Entender, mais pelo Sentir que pela Razão (Vergílio Ferreira)

Uma verdade só o é quando sentida - não quando apenas entendida.

Ficamos gratos a quem no-la demonstra para nos justificarmos como humanos perante os outros homens e entre eles nós mesmos. Mas a força dessa verdade está na força irrecusável com que nos afirmamos quem somos antes de sabermos porquê.

Assim nos é necessário estabelecer a diferença entre o que em nós é centrífugo e o que apenas é centrípeto. Nós somos centrifugamente pela irrupção inexorável de nós com tudo o que reconhecido ou não - e de que serve reconhecê-lo ou não? - como centripetamente provindo de fora, se nos recriou dentro no modo absoluto e original de se ser.

Só assim entenderemos que da «discussão» quase nunca nasça a «luz», porque a luz que nascer é normalmente a de duas pedras que se chocam. Da discussão não nasce a luz, porque a luz a nascer seria a que iluminasse a obscuridade de nós, a profundeza das nossas sombras profundas.

Decerto uma ideia que nos semeiem pode germinar e por isso as ideias é necessário que no-las semeiem. Mas a sua fertilidade não está na nossa mão ou na estrita qualidade da ideia semeada, porque o que somos profundamente só se altera quando isso que somos o quer - e não quando nós o deliberamos.

Assim nasce um desencontro quantas vezes entre a mecânica dos nossos raciocínios e a verdade que em nós já é morta. No hábito dos gestos, as mãos tecem ainda na exterioridade de nós a plausibilidade do que em nós já não é plausível. Então nos é necessário substituirmos toda a aparelhagem de que nos serviríamos e já não serve. Surpresos olhamos quem fomos porque já nos não reconhecemos.

Atónitos perguntamos como foi possível?, quando, onde, porquê?, ao espanto da nossa transfiguração, ao incrível da cilada que nós próprios nos armamos, mesmo quando foi a vida que a armou; porque tudo quanto é da vida, e dos outros, e dos mil acontecimentos que quisermos, só existe eficaz e real quando abre em evidência na profundidade de nós. Como aceitar assim a força da razão, se a força dela está onde ela não está?

Vergílio Ferreira (1916-1996), escritor e ensaísta português, in 'Invocação ao Meu Corpo'

Submited by

Sunday, July 31, 2011 - 22:48

Poesia :

No votes yet

AjAraujo

AjAraujo's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 6 years 49 weeks ago
Joined: 10/29/2009
Posts:
Points: 15584

Add comment

Login to post comments

other contents of AjAraujo

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Poetrix Poemas - de "Magma" (Guimarães Rosa) 2 27.736 06/11/2019 - 11:48 Portuguese
Videos/Music Ave Maria - Schubert (Andre Rieu & Mirusia Louwerse) 1 51.088 06/11/2019 - 11:02 English
Poesia/Fantasy Cabelos de fogo 0 7.406 04/28/2018 - 21:38 Portuguese
Poesia/Dedicated A criança dentro de ti 0 5.813 04/28/2018 - 21:20 Portuguese
Poesia/Thoughts O porto espiritual 0 7.242 04/28/2018 - 21:00 Portuguese
Poesia/Dedicated Ano Novo (Ferreira Gullar) 1 5.935 02/20/2018 - 19:17 Portuguese
Prosas/Drama Os ninguéns (Eduardo Galeano) 0 10.491 12/31/2017 - 19:09 Portuguese
Poesia/Dedicated Passagem de ano (Carlos Drummond de Andrade) 0 7.723 12/31/2017 - 18:59 Portuguese
Prosas/Contos Um conto de dor e neve (AjAraujo) 0 13.517 12/20/2016 - 11:42 Portuguese
Prosas/Contos Conto de Natal (Rubem Braga) 0 11.264 12/20/2016 - 11:28 Portuguese
Prosas/Contos A mensagem na garrafa - conto de Natal (AjAraujo) 0 14.953 12/04/2016 - 13:46 Portuguese
Poesia/Intervention Educar não é... castigar (AjAraujo) 0 7.490 07/08/2016 - 00:54 Portuguese
Poesia/Intervention Dois Anjos (Gabriela Mistral) 0 8.825 08/04/2015 - 23:50 Portuguese
Poesia/Dedicated Fonte (Gabriela Mistral) 0 6.881 08/04/2015 - 22:58 Portuguese
Poesia/Meditation O Hino Cotidiano (Gabriela Mistral) 0 7.416 08/04/2015 - 22:52 Portuguese
Poesia/Thoughts As portas não são obstáculos, mas diferentes passagens (Içami Tiba) 0 10.579 08/02/2015 - 23:48 Portuguese
Poesia/Dedicated Pétalas sobre o ataúde - a história de Pâmela (microconto) 0 12.202 03/30/2015 - 11:56 Portuguese
Poesia/Dedicated Ode para a rendição de uma infância perdida 0 9.316 03/30/2015 - 11:45 Portuguese
Poesia/Sadness Entre luzes e penumbras 0 6.918 03/30/2015 - 11:39 Portuguese
Poesia/Sadness No desfiladeiro 1 9.595 07/26/2014 - 00:09 Portuguese
Poesia/Intervention Sinais da história 0 6.959 07/17/2014 - 00:54 Portuguese
Poesia/Fantasy E você ainda acha pouco? 0 7.123 07/17/2014 - 00:51 Portuguese
Poesia/Aphorism Descanso eterno 2 8.370 07/03/2014 - 22:28 Portuguese
Poesia/Intervention Paisagem (Charles Baudelaire) 0 7.862 07/03/2014 - 03:16 Portuguese
Poesia/Meditation Elevação (Charles Baudelaire) 0 10.255 07/03/2014 - 03:05 Portuguese