EPISODIOS TRADUZIDOS IX
A fome assolando Pariz
(Traduzido do Canto x da «Henriada»)
Vagueava em Pariz feroz caterva
De estrangeiros crueis, de horrendos tigres,
Tigres pela Discordia apascentados,
Mais terriveis que a fome, a guerra, a morte.
Uns das campinas belgicas vieram,
Outros lá das helvéticas montanhas,
Barbaros corações, á guerra usados,
Que vivem de matar, que fazem prompto
Sacrifício venal do proprio sangue.
D'estes novos tyrannos a cohorte
Em sôfrego tropel derriba as portas
Dos tristes cidadãos, e lhes presenta
Mil mortes, mil tormentos, mil horrores;
Não já para os privar de vãos thesouros,
Não já para arrancar aos ternos braços
De espavorida mãe filha chorosa:
Faminta precisão consumidora
As demais sensações lhe impede, e abafa.
Pesquizar, descobrir qualquer sustento,
Por escasso, por mau, por vil que seja,
E' a sua intenção, seu fim, seu gosto:
Attentado não ha, não ha martyrio
Que para o conseguir não excogitem.
Indigente mulher... (oh céos ! E eu devo
Urdir a narração da feia historia,
Do horrivel caso escurecer meus versos !)
Indigente mulher perdido havia
Por violencia dos monstros esfaimados
Unico, parco, e misero alimento.
Invadindo seus bens a negra Sorte,
Apenas lhe deixára um tenro filho,
Proximo a perecer do mal, que a mata.
Raivosa, desgrenhada, um ferro empunha,
Corre, bramindo, ao candido innocente,
Que estende as debeis mãos para afagal-a.
Do triste a infancia, a graça, a voz, o estado
A phrenetica mãe de dôr traspassam.
Põe n'elle os espantados, turvos olhos,
Tintos de amor, de raiva, e de piedade.
O cutélo da mão lhe cáe tres vezes,
Mas a raiva triumpha, e, detestando
O fecundo hymenêo, com voz tremente:
«Oh d'esta alma infeliz porção mimosa !
Caro filho ! (ella exclama) em vão teus dias
Produzi, conservei com tanto afago.
Em breve ou da penuria, ou dos tyrannos
Fôras talvez a victima, o despojo
Se a mãe piedosa te poupasse a vida...
A vida! E para quê ? Para vagares
Do deserto Pariz entre as ruinas,
Desfazendo-te em ais, em dôr, e em pranto ?
Morre, antes que o meu mal, e o teu conheças,
Restitue-me, oh filho, o sangue, a vida,
Que te deu tua mãe; vem sepultar-te
Nas entranhas crueis; que te geraram,
E veja-se em Pariz um crime novo.»
Isto dizendo, attonita, e convulsa
No peito do filhinho embebe o ferro,
Leva o corpo sanguento ao lar fumante,
E, sofregas as mãos co'a fome horrenda,
A funesta iguaria ali preparam.
A força de voraz impaciencia
Volvem, raivando, os barbaros soldados
Ao theatro do crime atroz, e infando,
Similhantes na horrida alegria
Aos ursos, e aos leões que a prêa afferram !
Apostados correndo, a porta arrombam;
Entram... Céos! Que terror! Que assombro! A' vista
Carrancuda mulher eis se lhe off'rece,
Molle corpo infantil despedaçando,
Abrazada em furor, e em sangue envolta:
«Sim, féras, sim, crueis, meu filho é este!
Vós no seu sangue as mãos me enxovalhastes,
Sejam vosso alimento a mãe, e o filho.
Vinde, as sagradas leis da Natureza
Ultrajar mais do que eu temeis acaso ?
Que susto vos detêm, vos desalenta?
Oh tigres! Este pasto a vós pertence.»
Phrenetica, e sem tino, assim fallando,
Agruçado punhal no seio enterra.
Subito, da tragedia horrorisados,
Confusos, e ululando, os monstros correm;
Não ousam para traz volver os olhos,
* Cuidam que os ameaça, os segue o raio;
E o povo, por findar tão triste sorte,
Alçando as mãos aos céos, implora a morte.
Submited by
Poesia Consagrada :
- Inicie sesión para enviar comentarios
- 3034 reads
other contents of Bocage
Tema | Título | Respuestas | Lecturas |
Último envío![]() |
Idioma | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia Consagrada/General | GLOSAS LV | 2 | 2.851 | 02/27/2018 - 09:20 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | APÓLOGOS IX | 1 | 3.048 | 03/24/2011 - 17:43 | Portuguese | |
![]() |
Fotos/Perfil | bocage | 0 | 5.628 | 11/23/2010 - 23:36 | Portuguese |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XIII | 0 | 4.520 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XIV | 0 | 6.998 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XV | 0 | 4.008 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XVI | 0 | 4.966 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XVII | 0 | 4.553 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XVIII | 0 | 5.448 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XIX | 0 | 4.246 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XX | 0 | 6.880 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES III | 0 | 5.300 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES IV | 0 | 7.992 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES V | 0 | 4.590 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES VI | 0 | 4.860 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES VII | 0 | 4.753 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES VIII | 0 | 5.122 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES IX | 0 | 4.801 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES X | 0 | 5.501 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XI | 0 | 4.324 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | FASTOS DAS METAMORPHOSES XII | 0 | 5.395 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | EPISODIOS TRADUZIDOS VIII | 0 | 5.175 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | EPISODIOS TRADUZIDOS IX | 0 | 3.034 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | EPISODIOS TRADUZIDOS X | 0 | 2.917 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese | |
Poesia Consagrada/General | EPISODIOS TRADUZIDOS XI | 0 | 3.713 | 11/19/2010 - 15:56 | Portuguese |
Add comment