FASTOS DAS METAMORPHOSES XI

A descida de Orpheu aos infernos a buscar Eurydice

(Traduzido do Livro X)

De rutilantes vestes adornado
Hymenêo rompe o ar, e á Thracia vôa,
Lá d'onde o chama Orpheu, porém debalde.
O deus sim presidiu do vate ás nupcias,
Mas não levára ali solemnes vozes,
Nem presagio feliz, nem ledo rosto.
Sentiu-se apenas crepitar-lhe o facho,
E em vez de viva luz soltar um fumo
Lutuoso, e fatal: vãmente o nume
Tentou c'o movimento erguer-lhe a chamma.
O effeito foi peor que o mesto agouro.
Em quanto a linda noiva os prados gira,
Das nayades gentis acompanhada,
Áspide occulto fere o pé mimoso:
Morre a moça infeliz, e o triste amante
Depois de a lamentar aos céos, e á terra,
Emprehende commover do inferno as sombras,
Affouto desce a voz, Tenarias portas.
Por entre baralhada, aerea turba
Cujos restos mortaes sepulchro logram,
Aos negros paços vae do rei das trevas,
Vê do tyranno eterno o throno horrendo.
Lá casa os sons da voz, e os sons da lyra,
As deidades crueis lá diz: «Oh deuses,
Deuses do mundo sotoposto á terra,
No qual se ha de sumir tudo o que existe !
Se acaso a bem levaes que ingenuas vozes
O artificio removam, crede as minhas.
Não venho para vêr o opáco Averno,
Nem para agrilhoar as tres gargantas
Do monstro Medusêo. que erriçam cobras.
Attráe-me ao reino vosso a morta esposa,
A quem pizada vibora o veneno
Nas vêas desparziu, a flôr murchando
Dos annos festivaes, inda crescentes.
Constancia quiz oppôr ao damno acerbo,
Tentei vencer meu mal, e Amor venceu-me.
Este deus é nos céos bem conhecido,
Aqui não sei se o é, mas se não mente
No rapto que pregôa antiga fama,
Vós tambem pelo Amor ligados fostes.
Ah ! por este logar, que abrange o medo,
Por este ingente cahos, silencio vasto,
Que do profundo imperio o seio occupam,
De Eurydice gentil á dôce vida
O fio renovae, tão cedo roto.
Ella, todo o immortal vos é devido,
Vem tudo, agora, ou logo. á mesma estancia,
Para aqui pende tudo, é este o nosso
Derradeiro, infallivel domicilio;
Vós tendes, vós gozaes, a vós compete
Da especie humana o senhorio immenso;
A que exijo de vós ha de ser vossa
Por inviolavel jus, por lei dos Fados,
Tocando o termo da vital carreira:
O uso do meu prazer em dom vos peço.
Se e Destino repugna ao bem, que imploro,
Se a esposa me retêm, sahir não quero
D'este horror: exultae co'a morte de ambos.»
O triste, que assim une o verso á lyra,
Os exangues espiritos deploram:
A fugaz lympha Tantalo não corre:
A roda d'Ixion de assombro pára:
Os abutres crueis não mordem Ticio,
As Bélides os crives cahir deixam,
Tu, Sisypho, te assentas sobre a pedra.
Das vencidas Euménides é fama
Que pela vez primeira os negros olhos
Algumas tenues lagrimas verteram.
Nem a esposa feroz, nem Dite enorme
Ousam negar piedade ao vate orante,
Chamam subito Eurydice. Envolvida
Entre as recentes sombras ella estava:
Eis o mordido pé manso, e manso.
Recebe o thracio Orpheu co'a bella esposa
Lei de que para traz não volte os olhos
Em quante fôr trilhando o feio abysmo,
Se nulla não quizer a graça extrema.
Por duro, esconso, desigual caminho,
De escuras, bastas névoas carregado,
Um apoz outro es dous, vão em silencio:
Já do tartáreo fim distavam pouco.
Temendo o amante aqui perder-se a amada,
Cubiçoso de a vêr, lhe volve os olhos:
De repente Ih'a roubam. Corre, estende
As mãos, quer abraçar, ser abraçado,
E o misero sómente o vento abraça.
Ella morre outra vez, mas não se queixa,
Não se queixa do esposo; e poderia
Senão de ser querida lamentar-se?
Diz-lhe o supremo adeus, já mal ouvido;
E recáe a infeliz na sombra eterna.
Fica attonito Orpheu co'a dupla morte
Da malfadada esposa, com aquelle
Que n'um dos collos viu com rijos ferros
Preso, arrastado á luz o cão trifauce,
E que o mudo pavor despiu sómente
Quando despiu a natureza humana,
Transformado em rochedo immoto, e frio;
Ou qual o que a si mesmo impôz um crime,
Oleno, que de réo quiz ter o nome
Por te salvar, miserrima Letéa,
Orgulhosa de mais com teus encantos,
Tu, que foste c'o esposo outr'hora uma alma
Repartida em dous corpos, que hoje és pedra
Com elle, e juntos no Ida estaes sustidos.
O estygio remador expulsa o vate,
Que ora, que em vão tornar ao Orco intenta.
Sete dias jazeu na margem triste
Sem nutrimento algum: só a saudade,
As lagrimas, a dôr o alimentaram.
Depois de prantear vossa fereza,
Numes do inferno, ao Rhódope se acolhe,
E ao Hemo, de Aquilões sempre agitado.
Dera o giro annual tres vezes Phebo,
E sempre o terno Orpheu de amor fugia,
Ou porque o mal passado o refreava,
Ou porque eterna fé jurado houvesse
A miseranda esposa: repulsadas
Mil bellas nymphas seus desdens carpiram.

Submited by

Domingo, Noviembre 1, 2009 - 20:06

Poesia Consagrada :

Sin votos aún

Bocage

Imagen de Bocage
Desconectado
Título: Membro
Last seen: Hace 13 años 19 semanas
Integró: 10/12/2008
Posts:
Points: 1162

Add comment

Inicie sesión para enviar comentarios

other contents of Bocage

Tema Título Respuestas Lecturas Último envíoordenar por icono Idioma
Poesia Consagrada/General GLOSAS LV 2 2.073 02/27/2018 - 09:20 Portuguese
Poesia Consagrada/General APÓLOGOS IX 1 1.988 03/24/2011 - 17:43 Portuguese
Fotos/Perfil bocage 0 4.693 11/23/2010 - 23:36 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XIII 0 3.876 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XIV 0 3.588 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XV 0 3.290 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XVI 0 4.136 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XVII 0 3.857 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XVIII 0 4.159 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XIX 0 3.426 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XX 0 3.936 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES III 0 3.074 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES IV 0 4.334 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES V 0 3.680 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES VI 0 4.159 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES VII 0 3.572 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES VIII 0 3.906 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES IX 0 3.611 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES X 0 4.309 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XI 0 3.562 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XII 0 4.513 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPISODIOS TRADUZIDOS VIII 0 1.917 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPISODIOS TRADUZIDOS IX 0 1.888 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPISODIOS TRADUZIDOS X 0 2.095 11/19/2010 - 15:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPISODIOS TRADUZIDOS XI 0 2.886 11/19/2010 - 15:56 Portuguese