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A Chave - Capítulo I – Em Busca do Sonho
Sexta-feira, 1 de Setembro de 2000
Mais uma noite se passou num quarto vazio, cheio de coisas fúteis. Cama, mesa e roupa lavada eram coisas a que eu me tinha acomodado no dia-a-dia e que acabei por me convencer que era um dado adquirido, tal como respirar, tal como dormir… dormir numa cama que apesar de lá descansar o meu corpo, se encontrava sempre vazia – vazia e fria, mesmo nos dias tórridos de Verão. E o despertador, aquela máquina maldita que sempre me acordava quando os meus sonhos voavam mais alto, muito acima das nuvens, para além das estrelas.
Depois de um pequeno-almoço gélido, apesar da chávena do café me escaldar os dedos, tomei o meu habitual percurso para o emprego… Sim, emprego – não trabalho, não carreira, não perspectiva de futuro. Algo que a sociedade me impôs, como ultimato, sob pena de ser arrastada para a marginalidade. Sim, para pertencer a esta sociedade de pedra, tirei um curso superior, sobre uma matéria que não me interessava minimamente, mas sobre a qual tive que “empinar até queimar as pestanas”. Isto porque, segundo dizia a minha família, a Arte não dá pão.
Na rua, encontro uma multidão. São todos estranhos. Uns, porque são meus vizinhos, sentem-se na obrigação de pronunciarem um meio-cumprimento, pois eu só ouço “...dia”, ao que respondo com um sorriso tão hipócrita quanto eles.
Chego aos escritórios, naquele edifício cinzento com um brilho falso provocado pelo reflexo do sol nos vidros das janelas que preenchem a maior parte da parede frontal. Ali, encontro o mesmo afecto hipócrita: acenos de cabeça, substituindo um “bom dia”, uma palmada nas costas tão tangente que mal sentida, substituindo um “então, que tal?”. Um monte de dossiers pousados sobre a minha secretária elevam-se até esconderem da vista as costas altas da cadeira que costumo ocupar (não, não é minha, pois ela ficará, quando eu partir). Tentei respirar fundo, mas o ar não chegou, de todo, ao meu peito e senti-me sufocar. O nó que senti na entrada do estômago, mal acordei do meu sonho e me inteirei da dura realidade, estava agora mais apertado. Sentia náuseas e suores frios. Olhei os quadros pendurados na parede do fundo e encontrei sombras do que outrora tinham sido. Agora, amarelecidos pelo fumo de inúmeros cigarros e charutos ali consumidos, as pinturas de paisagens frescas, com cores vivas e naturais tinham morrido: agora eram meras figuras a esconder o estúpido padrão do papel de parede daquele mísero gabinete, rico só pelo valor material do equipamento que lá se encontrava. Desde o mobiliário importado da Itália até a todas as máquinas de telecomunicação: telefone, telefax, fotocopiadora, computador... tudo o que evitava o contacto pessoal entre os seres humanos, no dia-a-dia do negócio de pedra. Muito raramente cliente e fornecedor se encontravam corpo a corpo, face a face: tudo era tele-negociado.
Eu não nasci uma pessoa de negócios – simplesmente fui submetida a programação e ali estava eu a convencer pessoas e empresas a comprar aquilo que não precisavam, na realidade. Tinha que sair daquele “barco”, antes que me afundasse para sempre.
Na hora de almoço, como sempre, numa rotina desalmada contra a própria rotina, fui sentar-me num banco do jardim em frente ao edifício para comer o meu almoço de plástico. Tentava sentar-me sempre num banco diferente, mas quando dei por mim, estava feita louca, a andar em círculos, pois já me tinha sentado em todos eles e não havia mais nenhum jardim, ali perto, com bancos para me sentar, com canteiros de flores para cheirar. Decidi sentar-me nos degraus da entrada principal do edifício. Acabei o almoço mais cedo e dirigi-me ao balcão do banco onde tinha as minhas poupanças. Pedi o seu levantamento e transferência para a conta corrente. Apesar de saber que perderia os juros por não esperar mais uma semana, insisti que tinha de ser naquele preciso dia. Não podia esperar mais. A minha decisão era final e urgente a tomar. A vida e a felicidade não espera por nós e eu já tinha o meu caminho traçado para o futuro, bem longe dali.
De tarde, quando voltei ao gabinete, ignorei os restantes dossiers que ainda ocupavam a superfície da minha secretária e dediquei-me a juntar os meus parcos objectos pessoais. Meti-os em caixas e empilhei-as perto da porta. O telefone tinha tocado várias vezes e tinha três memos na minha caixa de correio electrónico. Mesmo sem ver, já sabia quem estava a tentar contactar-me e simplesmente ignorei-os. Dirigi-me a recepção, carregando as minhas preciosas caixas e um misterioso envelope (que de mistério não tinha nada – simplesmente, estava fechado); entreguei-o... ou melhor, pousei-o em cima do balcão, mesmo em frente à recepcionista, para que não houvesse dúvidas. Despedi-me de quem quisesse ouvir com um “Até breve”, muito claramente pronunciado para que soasse como o disse: com sinceridade, sem hipocrisia, sabendo o que estava a dizer. Não que esperasse voltar... nem pensar! Mas sim porque esperava, mais tarde encontrar alguns deles naquele lugar para onde eu me dirigia. Um lugar que eu só conheci nos meus sonhos, mas não precisava de mapa para o encontrar.
Sábado, 2 de Setembro de 2000
Levantei-me, ainda o sol estava a nascer. Tinha dormido pouco pela excitação que sentia. Preparei tudo o que tinha a preparar para deixar todo um passado para trás e pôr-me a caminho o mais cedo possível. A urgência da aventura quase me fazia correr sem necessidade. A correr rumo ao desconhecido, rumo à felicidade de uma aventura aliciante que me esperava. Agora sim, conseguia respirar fundo e o ar insuflava o meu peito e deixava nas minhas narinas um aroma a terra recentemente molhada por uma chuva de Verão. Junto, sentia também o aroma de vários néctares que tinham pousado e se misturaram com a terra. Esse aroma que me rodeava, entrava em mim e fazia soar o som de um tambor – o bater do meu coração – e, de repente, ouvi, vindo de dentro de mim, uma música que me fazia vibrar e, ao mesmo tempo, planar. De tal modo que nem sentia as irregularidades da estrada que seguia. Estava livre de todas aquelas máquinas e feliz pelo facto de o ter conseguido. Outrora, fui prisioneira de máquinas e tornei-me uma delas. Agora era um ser humano e prometi a mim mesmo que, aquilo que fiz por mim própria ia servir de exemplo a muita gente; isso seria uma das minhas próximas tarefas, isso fazia eu questão. Quero ver-me rodeada de seres humanos, livres e felizes. só assim, atingirei o máximo da minha alma.
Rodei horas a fio por estradas que me levavam a algures, onde se encontrava felicidade, paz e liberdade... vida! Alguns quilómetros atrás, tinha parado para atestar o meu estômago. Com a ansiedade de chegar ao meu destino, ainda naquele dia, tinha deixado passar a hora de almoço. Aquele aroma apurou o meu apetite e eu comi um lanche reforçado com vontade e prazer, coisa que já não sentia há muito tempo.
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