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A Chave - Capítulo III – O Projecto

Terça-feira, 5 de Setembro de 2000
Quando acordei, fi-lo sem qualquer dificuldade, a tempo de chegar à esplanada antes das nove. Fui a primeira. Um dos empregados veio ter comigo e perguntou-me se eu queria o pequeno-almoço. Agradeci e disse-lhe que estava à espera do Alex e do Pedro.
Ele sorriu, virou-se e dirigiu-se à porta da casa por cima do bar. Pensei que ia tocar à campainha, mas quando o ouvi falar, apercebi-me que a janela se encontrava aberta.
- Alex, vien! Helena hay llegado! – gritou o empregado.
Acenei-lhe em sinal de agradecimento. Olhei para cima e sorri. Ali estava ele, mãos nas portadas da janela, camisa aberta. Ao sorrir para mim, apesar da distância, consegui distinguir duas fileiras de dentes muito brancos, em contraste com a pele muito morena.
- Pontualíssima, minha cara! Olha, Pedro, ela já chegou – disse ele sem deixar de olhar cá para fora.
Olhei para trás, pois pensei que o Pedro estava a chegar, mas não vi ninguém. Voltei a olhar em frente, para cima e vi, noutra janela, de tronco nu, o Pedro, também sorrindo.
- Dois minutos! Aproveita e toma um cafezinho! – disse o Alex antes de fechar a janela.
Quando desceram, cumprimentaram-me efusivamente e fomos para o carro. Dirigimo-nos para Málaga. Os escritórios eram mesmo à entrada do porto. Quando lá chegámos e saímos do carro, veio um senhor já de meia-idade ter connosco e cumprimentou-nos com a afectividade que eu já conhecia sendo característica daquele povo maravilhoso. Depois das devidas apresentações de Mariano, o dono daquela agência imobiliária, o Alex passou ao “ataque”.
- Vamos directos ao assunto para não perdermos tempo: ainda há muita coisa a fazer, hoje. Mariano, aquele terreno adjacente ao meu bar está abandonado há muito tempo, mas não há qualquer indicação que está para venda...
- Sei do que estás a falar. Ontem, quando me telefonaste, lembrei-me disso e telefonei para a conservatória e descobri o nome e o contacto do proprietário. Falei com ele e... imagina: ele quer saber quanto ofereces por aquele terreno.
- O valor justo do mercado, se não tiver qualquer tipo de licença.
- Isto dá cerca de vinte mil euros...
- Com a tua comissão, claro!
- Ora Alex! Quem está a falar em comissões? Este terreno não está na minha base de dados. Isto é um especial favor para um amigo!
- Dezasseis mil e negócio feito.
- Não pode...
- Como não pode? Tu mesmo disseste que ele quer saber quanto ofereço. Então... eu ofereço dezasseis. Se ele não aceitar, paciência: partimos para outra. Ele pôs algum limite? Então...
- Espera, vou telefonar-lhe – enquanto Mariano fazia a ligação, nós cruzámos olhares significantes e o Alex piscou-nos o olho, sorrindo, quase triunfante – Sr. Juan Ramirez? Bom dia, daqui Mariano da agência Malapuerto. O meu cliente oferece dezasseis mil...... huhum, compreendo, sei pois. Pode aguardar um momento? – agora dirigindo-se ao Alex – Ele quer falar contigo.
- Bom dia sr Ramirez, como vai? Meu nome é Alex...... Bem obrigado. Diga-me, por favor, o que acha da oferta?...... Não, não faz mal! É claro que eu preferia que fosse um terreno perto do meu bar, mas se não aceita a oferta, procurarei outro...... Não, é claro que não: é pegar ou largar. até que vendê-lo não deve ser do interesse do senhor, visto que não há qualquer indicação que está à venda, no local...... Ah sim? Mas licença para que ramo?...... Então as coisas mudam de figura! Dezoito: mais mil pela licença e outros mil pelo tempo de espera que vou poupar. Aceita?...... Não, não vale isso, lamento, sr. Ramirez, nada feito. Tenha um bom dia, sr. Ramirez. – dito isto, desligou o telefone.
- Vamos ter que procurar outro, não é? – perguntei, ao que ele respondeu com um piscar de olhos e com um dedo à frente dos lábios, em sinal de pedido para mais nada dizer. Pedro entendeu e não proferiu uma palavra e eu, a partir daí, agi da mesma forma.
- Bem, Mariano, vais ter que nos encontrar um terreno noutro sítio, mas... por favor, não saias de Nerja!
- Alex, Alex! Eu nunca tiro só uma carta de cada vez, meu amigo! Do lado de lá do Balcão da Europa, há um terreno de quinhentos metros quadrados, com licença para restauração. Trinta e cinco mil... que achas?
- Do outro lado?! Tu conheces os acessos tão bem quanto eu. Sabes quanto vale o metro quadrado, naquele sítio?
- Em Nerja não encontro mais nada...
- E, por isso, tenho que aceitar qualquer preço, certo? Para além disso, tu sabes que, para pagar esse preço, eu teria que vender a minha casa e o bar? Enquanto a construção não estivesse concluída, que faria eu? E que garantia teria eu de manter os meus clientes? Achas que eles estariam dispostos a deixar os carros a dois quilómetros de distância e andar cerca de meia hora a pé... só para irem ao bar do Alex?... Tu deves estar louco, para me apresentares esta situação...
Entretanto, o telefone tocou. O Alex ficou a olhar para o telefone e, depois, para o Mariano, apontando o telefone:
- Atende, eu espero.
- Sim? Ah sim, sr. Ramirez, diga, por favor... sim, sim, compreendo. Espere um momento, por favor – dirigindo-se a Alex, Mariano diz – ele diz que aceita os dezoito mil. Posso fechar?
- Não, diz-lhe que já encontrei outro.
Ficámos todos a olhar para ele, boquiabertos. A que se referia ele?
- Não, deixa-me falar com ele – dito isto, quase arrancou o telefone da mão do Mariano – Sr. Ramirez, sou eu, Alex. Lamento dizer-lhe que já encontrei um terreno que me trará mais vantagens. Bem situado e com toda a parte burocrática tratada. Trata-se de uma escritura que foi cancelada por desistência e eu aproveitei esta oportunidade, pela urgência que tenho na construção...... Não, não tenho tempo para entrar em detalhes. Sr. Ramirez, tenha um...... como? Então já falamos a mesma língua: negócios, sr. Ramirez! Sendo assim, já se torna mais vantajoso para mim! Tem a certeza que essa e a sua decisão final? Entende que não posso perder tempo com indecisões...... Sim, assim está bem. Vou deixar, como garantia, mil euros nas mãos do sr. Mariano. Encontramo-nos aqui nos escritórios amanhã de manhã?...... Nove e meia então, sr. Ramirez, tenha um bom dia...... Obrigado!
Quando desligou, olhou para nós com um sorriso de vitória nos seus olhos que brilhavam ainda mais do que o que já era habitual.
- Ele aceitou dezasseis mil! Já temos um terreno e é mesmo ali ao lado!
Todos o cumprimentamos pela sua excelência em negociação.
- Ora, ora, não exagerem! Isto e só a ponta do iceberg. Ainda há muita coisa para tratar!
- Será que posso ajudar? – perguntou Mariano.
- Podes e deves, meu amigo! Não é só isto que precisamos. Lembras-te daquela escola primária que fechou no ano lectivo passado, definitivamente? Ainda não foi a leilão, pois não?
- Já esteve em leilão, mas ninguém licitou. Vai haver outro leilão esta sexta-feira. Queres que peça licitação? Posso ligar para o Governo Civil. Acho que ainda vou a tempo de o fazer ainda para esta semana.
- Isto é com o Pedro. É para ele...
- Ah Alex! Depois do que assisti, dou-te carta branca para tratares de tudo. Tu és um homem de negócios e sei que consegues melhor que eu.
- Pedro, por acaso lembras-te de que eu só tenho as manhãs para descansar. De tarde até à noite, sempre no bar...
- Sim, tens razão, Alex. Desculpa, estava a ser egoísta. Mariano, agradeço-te então, se conseguires pedir a licitação da velha escola para esta semana. Faz os possíveis, sim?
- Tenho uma ideia, rapazes... isto, claro, se o Alex concordar e confiar em mim... – interrompi.
- Que sugeres miúda? – perguntou o Alex.
- Se quiseres, posso estar no bar, durante umas horas, no período que tu preferires: de tarde ou à noite. Isto durante o tempo que for necessário para tratares destes negócios.
- A sério que podes fazer isso? Então, tenho uma proposta a fazer-te...
- Sim...
- Fecha a conta no “hostal”. Tenho um quarto na minha casa que tu podes ocupar.
- Ah, não vejo necessidade para tal...
- Pois eu vejo toda a necessidade! Não estás a imaginar o empregado ir, a correr, chamar-te ao “hostal”, sempre que for necessário, pois não?
- Mas... e a tua privacidade?
- Pergunta antes pela tua. Se não quiseres aceitar, compreendo, mas que seja por ti e não por mim.
Estendi-lhe a mão, em sinal de acordo – está bem! Mudo-me hoje, ok?
- Com todo o prazer. Bem, vamos agora ao resto.
- Ao resto? – perguntei eu – o que falta ainda?
- Esqueces-te de ti própria? E as casas de que falaste? Ou mudaste de ideias?
- Não, apenas fiquei confusa com tudo isto Ainda não me explicaste quais os teus planos em relação à sociedade...
- Pois tens razão, miúda... Diz-me, Mariano, qual é a licença de construção deste terreno, quanto ao número de pisos?
- Como tem licença de hotelaria, a altura máxima é de três pisos, para respeitar o ordenamento territorial. No entanto, podes construir com três frentes, ficando assim com paredes-meias com a tua casa e bar.
- O que é óptimo, pois dá hipótese de construir habitações com entradas independentes – de repente vira-se para mim – desculpa mais uma vez... a minha ideia é fazer do meu bar, um bar propriamente dito, isto é, exclusivamente para bebidas e, no terreno adjacente, ficaria o restaurante; por cima ficariam as casas que tu queres... isto se concordares, claro!
- Imediatamente por cima do restaurante, ficaria a minha casa, com dois quartos, com frente a sul. As outras duas ficariam no mesmo piso com frentes opostas ou, então, ambas com frente a este, com as entradas nas extremidades das frentes; ou até com vão de escadas comum... depois vê-se...
- Quando é que vais decidir isso?
- Vamos decidir isso depois de jantar...
- Vamos? Isso é uma ordem, comandante? – perguntou ele, sorrindo.
- Sim... ordem que sei que vais cumprir com todo o prazer – respondi eu, seguido de uma gargalhada. Sois pessoas formidáveis e eu conto contigo e com o Pedro para colaborarem comigo para que a nossa sociedade tenha o maior sucesso, principalmente, a nível pessoal! E eu quero brindar a isso, pessoal!
- E quando é que tencionas começar com a tua parte?
- Amanhã, se não já hoje, estou ansiosa! Tenho o meu portátil já com a rede activada. Hoje vou fazer um pequeno esboço daquilo que estou a pensar fazer para vos mostrar e, amanhã, depois de tudo delineado, passo à acção.
- Mariano – disse o Alex – tens o meu número. Assim que souberes novidades, contacta-me. Se conseguirmos abarcar a velha escola primária, depois de umas pequenas alterações, será promovida a academia de surf, não achas, Pedro? O pequeno bungalow ficará em tua posse como depósito de material didáctico... por se assim dizer, isto é, pranchas de surf, fatos, etc. Afinal, as aulas práticas, vão ser dadas em Tarifa: nisso não vai haver alterações. Não há melhor praia para surf aqui perto.
- Diz-me uma coisa, Alex, alguns alunos não tem transporte... como vamos das aulas teóricas para as práticas? – perguntou o Pedro.
- Se tudo correr bem, fica resolvido logo à noite, ao jantar. – respondeu o Alex; depois, dirigindo-se a mim - Por falar nisso, niña, queres convidar os teus amigos a irem lá jantar outra vez, esta noite?
- Tenho todo o interesse. Quero-lhes falar sobre as novidades. Tenho a certeza que isto vai ser uma luz ao fundo do túnel para a Laure e para o Andy.
Houve um abraço efusivo entre os três e o Mariano deu-nos os parabéns. O Alex juntou-o ao nosso abraço – desculpa, Mariano, quase nos esquecemos de ti. Afinal, sem a tua ajuda, nada disto seria possível! Estás convidado para te juntares a nós no nosso almoço de celebração da nossa sociedade.
- Lamento não poder aceitar – respondeu ele, olhando para o relógio – tenho um cliente, daqui a uma hora. Mas acredita que, assim que tudo isto estiver resolvido, almoçaremos os quatro e serei eu a convidar, com todo o prazer... no vosso restaurante! Agora vou elaborar o vosso contrato para ser assinado amanhã.
Despedimo-nos dele e seguimos para Nerja. Estava ansiosa por chegar lá, olhar para o terreno e sonhar com o nosso projecto já realizado. Eles estavam igualmente entusiasmados, pelo que dava para notar pelo brilho dos seus olhos. Quando chegámos, estacionámos o carro e saímos do carro. Ficámos a olhar o mar... os três, como se estivéssemos (e estávamos) a viver o mesmo sonho.
Respirei fundo. Aqueles três sentidos voltaram a funcionar mais forte, como aliás acontecia quando saia e regressava a Nerja. Málaga é linda, mas como todas as grandes cidades, tinha perdido o interesse, para mim. Eu e os meus sentidos, tínhamos elegido Nerja como o Paraíso.
- Vou já ter convosco. só vou ao “hostal” fechar a conta e... depois, lá me terás e, agora sim, mais do que nunca, “à perna” – dizendo isto pisquei-lhe o olho e o Pedro ficou a olhar para nós, atónito, pois não sabia ao que eu me referia.
- Ficámos à tua espera... não precisas de ajuda?
- Para quê? Para fechar a conta ou para trazer as coisas? – brinquei.
- Para as duas coisas. Não sei, o Josep pode querer que fiques lá para sempre e raptar-te – respondeu o Alex rindo-se.
- Se não for incómodo, então, agradeço...
- Se agradeces, não vou...
- Tu também?!
- Ah?...
- Tu também não gostas que te agradeçam? Bah, pura coincidência, esqueçam!
- Que pasa muller?
- O meu Amigo também não gosta...
- É... talvez não passe de uma coincidência...
Seguimos os três para o “hostal”. O Josep, quando nos viu a entrar os três, perguntou:
- Hola compañeros, que pasa?
- Ninguno. Venimos ayudar la señorita a cargar sus cosas. Se va a cambiar para mi casa.
- Ah, bien, entonces que siga.
Depois de ter carregado tudo para a entrada da casa do Alex. Ele agarrou-me pelo braço.
- Nem penses que vais fazer isso agora, miúda. Agora vamos almoçar, que eu estou a morrer de fome e aposto que vocês também.
Concordei e seguimos para uma mesa que já estava posta e reservada para nós. Durante o almoço, falámos de quase tudo, mas, principalmente dos nossos projectos em conjunto. estávamos entusiasmadíssimos e nem dávamos pelo tempo passar, se não fosse o empregado vir levantar a mesa.
- Ficávamos aqui o dia todo, mas cada um de nós já tem as suas tarefas delineadas. – entregou-me um grupo de chaves – Depois de arrumar as tuas coisas, podes ir à vila ir fazer uma cópia de cada uma delas. São da casa e do bar. Vais precisar, para aquilo que te ofereceste. Lamento, mas hoje não há praia – disse com uma voz autoritária, mas, ao fim, riu-se – Vai lá, miúda, adoro-te! – dito isto deu-me um beijo na testa, um beijo quase fraternal, mas que passava um pouco essa mesma linha.
- Também te adoro – respondi eu, olhando para ele. E dei-lhe um beijo, com o mesmo afecto – a ti, também, Pedro! – e fui colocar um beijo na sua face – à nossa!
- À nossa! – responderam ambos, um pouco embaraçados, apanhados de surpresa pela minha espontaneidade.
Depois de arrumar as minhas coisas no quarto que me fora oferecido, pousei o meu portátil em cima da cama, liguei-o e conectei-me na rede. Ele estava off-line. Enviei-lhe uma mensagem pelo telemóvel: “Olá querido, está tudo bem contigo? ‘Tou on-line.”.
Enquanto esperava, fui abrir a janela do que, a partir de agora e durante uns tempos, seria o meu quarto. Passados alguns minutos ouvi um som no meu portátil e olhei. Ele tinha acabado de entrar. Começámos a escrever e eu contei-lhe sobre as últimas novidades, ao que ele perguntou se eu me tinha sentido confiante o suficiente para partir para esta aventura, ou se era mais um daqueles desafios que eu aceito sem olhar para trás.
- Não!, estão a ser coincidências a mais!
- O quê?
- Tem acontecido algumas situações que me podem levar à conclusão que os meus amigos te conhecem e tu a eles... será possível? Já alguma vez estiveste em Nerja?
- Não, mas estou a pensar em ir, em breve...
- Nem conheces ninguém que tenha vindo para aqui? – apercebendo-me do que ele tinha respondido, mudei o meu questionário – estás a pensar em vir a Nerja? Porquê, posso saber?
- Porquê... Essa pergunta não tem razão de ser, quando tens a resposta dentro de ti. Por tal, não te respondo.
- Então, as regras são essas? Ok, eu entro nesse jogo!
- Qual jogo?
- Qual... Essa pergunta não tem razão de ser, quando tens a resposta dentro de ti. Por tal, não te respondo.
- Mazinha!
- Mauzinho! Agora tenho que ir. Falamos amanhã, ok querido? Beijinhos. Fui.
Desconectei-me. Agora era hora de sair para fazer as cópias das chaves e voltar para começar a trabalhar. Havia tanta coisa para fazer!
Quando voltei, ele estava dentro do balcão a servir uns clientes, mas não deixou de me dirigir um olhar, estranho por sinal, que eu não soube interpretar. Admiração, carinho? Decidi deixar para ele a tarefa de mo dizer. Agora tinha que me dedicar a um projecto, de corpo e alma... não tinha: queria! Entrei no meu quarto e abri novamente o meu portátil. Consultei algumas páginas de internet que me interessaram, depois da busca que fiz, para captar algumas ideias; outras, para saber mais da região de Andalucia. Eu precisava disso. Não iria construir um projecto de trabalho em base de tradições do meu país, pois não era lá que eu me encontrava. O seu a seu dono!
Reuni os dados que necessitava da internet. Precisava de uns cd’s de música que, muito dificilmente, encontraria nas lojas correntes. Teria que perguntar ao Alex e ao Pedro se eles sabiam onde os poderia encontrar. Isso teria que esperar pela hora do jantar... jantar! Meu Deus, esqueci-me de contactar os dois casais dinamarqueses! Entretanto, olhei para o relógio. Já era tarde: nunca os encontraria na praia, a esta hora. Estava eu a pensar numa maneira de os contactar, quando ouvi a voz do empregado do bar a chamar por mim. Fui até à janela.
- Si, Juan?
- Helena, llegaran sus amigos, esperan usted en la terrasa.
- Si, me voy!
Desci as escadas a correr, agradeci a Juan e fui ter com eles, contente por eles terem escolhido a esplanada do Alex para jantarem.
- Olá, bem dispostos?
- Sim, claro. E tu? Não te vimos na praia e ficámos preocupados. Como sabíamos que poderíamos encontrar-te aqui, decidimos vir aqui jantar. Para além disso, a comida é deliciosa, os empregados muito simpáticos...
- E eu tenho óptimas notícias! Ainda bem que decidiram cá vir. Quando vi as horas, já era tarde para vos encontrar na praia.
- Conta lá! Não nos mates de “suspense”!
- Estão a ver este terreno aqui ao lado do bar? Olhem bem para ele e digam-me o que acham?
- É óptimo para construir – respondeu o Andy.
- É nosso: meu, do Alex e do Pedro – a nova sociedade, a sociedade dos “portugas”... ah pois, vocês ainda não sabiam desta nossa decisão, nem conhecem o Pedro, pois não? – acenaram que não e eu passei às apresentações – Pedro, podes chegar aqui, por favor? – apontando para cada um, fui dizendo os seus nomes – conheci estas simpatias dinamarquesas na praia no dia a seguir à minha chegada; não sei se o Alex te falou deles...
- O Alex pôs-me ao corrente de tudo o que estava relacionado contigo. Ele não se esqueceu de me falar sobre a tua vontade de os ajudar. Só que ainda não os conhecia pessoalmente.
- O Pedro é professor de surf na praia de Tarifa e o projecto inclui também a sua escola.
- E o que vão fazer ao terreno?
- É aí que consiste as boas notícias... – e comecei a relatar-lhes tudo o que tinha sido planeado fazer daquele terreno – Mas há algo que ainda não está decidido, pois está à espera de uma decisão vossa, Laure e Andy: preferem entradas independentes ou com vão de escadas comum?
- Estás a falar a sério?
- Porque brincaria com um assunto tão sério? Desde que me falaram dos vossos planos, eu resolvi que, mal eu tivesse uma base de apoio, vos iria ajudar: vocês merecem. Quanto a vocês, Connie e Rick... posso tratar-te por Rick? – ao aceno afirmativo, continuei – quanto a vocês, se quiserem, tem a outra casa reservada para vocês durante um mês, todos os anos. O que dizem?
- Ficaram todos calados, olhos muito abertos de espanto, a olhar intercaladamente entre eles, para nós e para o terreno. Entretanto, a Laure encontrou palavras.
- O que dizemos? Que tu és a pessoa mais espectacular que encontrámos, até hoje, à face da terra!
Levantaram-se todos. A Laure e a Connie pegaram-me nas mãos, para que eu me levantasse também. abraçaram-me calorosamente, todos. Estivemos assim, os cinco, até que o Pedro falou.
- Meus amigos, eu só conheço a Helena desde ontem à noite. Mas, passado cinco minutos de ela me ter sido apresentada, já eu tinha a certeza que se tratava de uma pessoa genuína, amiga dos seus amigos, sem qualquer interesse pessoal. Ela vai alugar-vos a casa em sistema de leasing, sem qualquer margem de lucro. Assim que as rendas mensais somem o valor da casa, esta é vossa – disse ele, dirigindo-se à Laure e ao Andy. Depois virando-se para a Connie e o Rick, continuou – Sempre que vocês quiserem vir aqui passar férias, a outra casa estará ao vosso dispor durante um mês: só precisam de dizer com antecedência qual o mês que escolhem. O resto do ano será alugada em sistema de aluguer de curta duração para ajudar a pagar a sua manutenção.
Olharam outra vez entre eles e a Laure falou mais uma vez – Pode ser com vão de escadas comum. Tenho a certeza que nunca teremos problemas com os nossos vizinhos esporádicos, quem quer que eles sejam. Os turistas quando vem aqui passar férias, é para terem paz e relaxarem: não querem arranjar problemas com ninguém... Ouçam: vocês já tem o staff necessário para a delineação do projecto? Engenheiro, arquitecto, geologista...?
Não precisamos de geologista. O terreno já foi estudado e já tem licença de construção para o ramo de hotelaria – respondeu o Pedro – o relatório encontra-se junto com os restantes documentos relativos ao terreno: original na conservatória e cópia nas mãos do proprietário. Este vai entregar-nos tudo isso amanhã, quando formos assinar o contrato. Mas arquitecto e engenheiro ainda não temos.
- Se me permitem, apresento-vos um dos melhores arquitectos dinamarqueses e é com todo o prazer que ele vos oferece os seus serviços: Andy!
- Andy? És arquitecto? Estavas a exercer as duas funções? – perguntei eu, pois ainda não conhecia essa parte da história.
- Não, abandonei a carreira de arquitectura. O Gabinete onde eu trabalhava teve que fechar por ter sido acusado de ter cometido uma série de fraudes... corrupção, entendes? Então, eu comecei a procurar emprego noutros gabinetes e até na função pública. No entanto, trouxe, atrás de mim, um bocado da má reputação do Gabinete. Felizmente, a Laure tinha, na altura, um bom ordenado que nos suportou durante seis meses. Entretanto, fomos tratando de encontrar uma fonte de rendimento que nos livrasse de trabalhar por conta de outrem e, com a ajuda dos pais de ambos, inaugurámos aquele bar. Durante o primeiro ano, a Laure fez um esforço enorme em ajudar-me no bar após as suas 7 horas de trabalho nos escritórios da empresa onde era secretária de administração. Depois de aturar o administrador (que tinha um feitio danado), ela vinha para o bar e ainda tinha que pôr uma cara simpática para os clientes e ouvir os desabafos de alguns solitários que, pela sua paciência, sempre a preferiram a ela para descarregar os seus fardos do dia-a-dia. Só ano passado ela pediu demissão e, a partir daí, sempre esteve, a tempo inteiro, comigo no bar. A partir daí, Helena, já conheces a história. Se aceitarem os meus serviços, começo já amanhã de manhã.
- Por mim, aceito com todo o prazer; Pedro, que dizes? Penso que o Alex não tem nada a opor, mas eu vou falar com ele. Aguardem um minuto, por favor.
Segui até ao balcão e sentei-me num banco, à espera que o Alex acabasse de servir um cliente. Quando ele acabou, passei a relatar-lhe o decorrer dos acontecimentos e acho que o entusiasmo dele se podia equiparar ao meu, pois apareceu, mais uma vez, aquele brilho no seu olhar.
- Então agora só precisamos de um engenheiro... – disse ele.
- E a construção? – perguntei.
- Quanto a isso, não te preocupes. Encontrei aí uns rapazes que fazem a obra por um valor irrisório e as refeições. Estava a pensar em pagar-lhes dois euros à hora. Que dizes?
- Por mim está perfeito. Eles já poupam bastante nas duas refeições. Isto está a correr tão bem, Alex! Por favor, diz-me que isto não é um sonho...
Ele agarrou-me nos braços, por cima do balcão, e ficou a olhar para mim durante os segundos. Depois disse:
- Não, miúda, isto não é um sonho, mas... e se fosse?
- Não queria acordar nunca mais! – respondi-lhe sorrindo enternecida pelo seu olhar, mas sem querer que ele o prolongasse por muito tempo. Estava demasiado entusiasmada com o projecto e não queria perder o rumo que tinha tomado. Dei-lhe um beijo na face e disse-lhe: – venho já...
- Fico à espera... – mas já não ouvi a sua resposta, dada a rapidez com que me dirigi para a mesa onde se encontrava o Pedro e os dois casais.
Pela primeira vez, naquele lugar, estava a refugiar-me de algo, para não ter que enfrentar algo que eu temia... “Oh não, outra vez não, por favor!” pensei eu “estes medos não me vão invadir aqui, neste lugar tão belo, cheio de pessoas belas...”. Não me podia deixar abalar; entretanto, também não tinha fundamentos suficientes para falar com ele sobre o assunto... não, eu poderia estar a cometer um erro terrível e, se isso acontecesse, nunca perdoaria a mim própria. Para além disso, tinha um projecto em mãos, a desenvolver: tinha que me concentrar nessa tarefa.
Fui comunicar a resposta do Alex aos outros. Antes de eles se retirarem, chamei-o para que ele se juntasse a nós para um brinde ao que ele acedeu imediatamente, pois não tinha clientes para atender. Aproveitou o espaço para ficar o mais possível próximo de mim e colocou o seu braço nos meus ombros. Naquele momento, senti-me como um navio num porto seguro, mas... não era como eu me vinha a sentir desde que cheguei aquele lugar? Talvez, sem eu me aperceber, ele tenha sido a amarra que me fez sentir solidamente estável... Não podia continuar a pensar nisso: estávamos ali todos para fazer um brinde... olhei para ele com carinho, enquanto pegava no copo e pus o meu braço em volta da sua cintura – gesto mais que suficiente para sentir que ele estremeceu ao meu toque. Mas depois de brindarmos, pousei o copo e coloquei o outro meu braço de igual modo em volta da cintura de Pedro. Este olhou-me com alguma surpresa, mas ao deparar com o meu olhar, senti que ele compreendeu e correspondeu com o mesmo gesto. Estávamos ali os sete, a comemorar algo muito importante em que eu tinha de me concentrar exclusivamente, para que os meus pensamentos não eclodissem. Se isso acontecesse, seria um choque brutal e, provavelmente, alguém iria sair magoado.
Quando nos despedimos dos dois casais, ficámos os três sozinhos. Os empregados já tinham sido dispensados e restava fazer o fecho do bar. Levantei-me com a intenção de ajudar e o Pedro segui-me.
- Bem, vamos ao trabalho! – disse eu.
- Dá-me uma vassoura que eu varro isto – rematou o Pedro.
- Vão ficar os dois a ajudar-me? – perguntou o Alex – não é necessário, podem ir descansar...
- Nem penses! Não saímos daqui sem ti, sócio! – interrompi a sorrir – para além disso, preciso de falar convosco depois de acabarmos... mas só depois! – terminei eu ao ver as suas caras de curiosidade.
Quando eu e o Pedro acabámos de arrumar e limpar tudo, já o Alex tinha acabado de fazer o fecho de caixa e, assim, juntámo-nos numa mesa da esplanada, perto da entrada para a praia, precisamente onde eu tinha visto o Alex pela primeira vez. Sentámo-nos e eu comecei:
- Como devem calcular, eu já comecei o meu trabalho de publicidade e decoração, mas preciso de alguns dados que, certamente, vocês me podem dar, visto já se encontrarem aqui em Nerja há mais tempo... mas antes disso: Alex, vais querer manter o lay-out do bar?
- Gostava de alterá-lo, mas isso implica o fecho do bar por uns dias, devido às complicações da instalação eléctrica e canalizações. Não, é preferível deixar como está.
- Ok, a minha ideia é esta: alterar o revestimento das paredes para bambu com uma protecção anti-combustão; o tampo do balcão, devido às exigências das normas de higiene, pode ser de madeira com uma camada de verniz lavável; a parte debaixo do mesmo, pela parte de fora, seria revestida a “tijolo burro” pitorescamente colocado. Ao fundo, onde tens a mesa de som, a parede deverá ter vários posters que serão a réplica de capas de cds de música espanhola e rock clássico: a música que tu pões terá reflexo visual nesses posters... não esquecendo a iluminação: várias tochas colocadas ao longo das paredes, para dar o efeito rústico desejado. Ora, alguns dos cds já muito dificilmente se encontrarão no mercado. Vocês sabem onde encontrar António Flores, Vitor Emanuel e Ana Belen, Luz Cazal, Mago de Oz, U2, Pink Floyd, Dire Straits, Nirvana, Queen, Carlos Santana e outros de rock clássico?
Olharam os dois entre si e, depois, para mim, boquiabertos. O Pedro falou:
- Tu conheces António Flores, Victor Emanuel e Ana Belen, Luz Cazal e Mago de Oz?
- Se conheço! Melhor, adoro as suas músicas!
- Como os conheces? Não são conhecidos em Portugal...
- Eu sei... eu tenho um pedacinho de Espanha no meu passado. Eu tinha esses cds, mas deixei-os para trás, no meu percurso para o presente.
- Queres falar disso?
- Não quero entrar em detalhes para não nos aborrecermos. Eles estavam arquivados no sítio errado. Agora sei que posso pegar neles e ouvi-los sem consequências desastrosas.
- O que te levou a essa conclusão?
- Já não me sinto só nem triste...
- Porque encontraste aquele teu Amigo?
- Não só...também porque vos encontrei. Porque, finalmente, conheci pessoas a quem eu posso abrir o coração sem ter receio de sair magoada. Isso ajudou-me muito a reorganizar o meu passado, podem crer!
- Ficamos contentes por te sentires assim – disse o Pedro.
Sorri e retornei ao assunto anterior. Instintivamente, continuava a fugir a determinados estados emocionais que me podiam desviar do meu principal objectivo, naquele momento: cumprir a minha tarefa no projecto.
- Então, sabes onde encontrar esses cds?
- Alguns, podes encontrar no meu bar; outros na minha sala, à beira da aparelhagem. Os que não encontrares ai, podes tentar na feira de usados, na sexta-feira, em Málaga. É perto da agência do Mariano. – respondeu o Alex.
- De manhã ou de tarde?
- Todo o dia porquê?
- Esqueces-te do que ficou combinado? Sexta-feira deverá ser a licitação da velha escola. Queres que fique no bar à tarde ou à noite?
- À tarde, querida, se não te importares...
- E claro que não me importo. Amanhã, depois de assinarmos o contrato, preciso de passar numa loja de informática para imprimir umas folhas e ver o preço de uma impressora multifunções. Vou precisar de uma...
- Diz antes, vamos precisar de uma! – corrigiu o Pedro.
- Não, não é só para o projecto. Também preciso para uso pessoal...
- Não sejas pateta, miúda! – interrompeu o Alex – a impressora vai ser da sociedade e tu podes imprimir o que quiseres nela... mesmo as páginas do teu livro!
- Perdi algo? – perguntou o Pedro – livro... que livro?
- Peço desculpa, Pedro, pensei que o Alex te tinha contado. Estou a escrever um livro em conjunto com um Amigo... aquele a que o Alex se referiu há pouco.
- Então a tua arte é a escrita... Pensei que estavas dedicada as artes plásticas... prosa ou poema?
- Ambas. Depois mostro-te algo que já escrevi e nunca publiquei. Atenção, que eu não sou artista profissional. Nunca segui a carreira. Sou uma mera amadora!
- Então e eu? – perguntou o Alex, simulando um gesto de ciúmes em tom de brincadeira – eu também quero ler!
- Podem ler os dois... ao mesmo tempo! – disse eu, pondo os meus braços em cima dos ombros de ambos – e só tirar duas impressões... sim, porque não está em livro: só num ficheiro de Word. Agora temos que descansar. Amanhã às 9 horas, aqui?
- Sim, niña... não te esqueças que estás aqui e não mais no “hostal”! O caminho é para ali...
- Não bebi tanto assim!... – respondi rindo e simulando um andar cambaleante. Depois voltei-me e fiz voar um beijo da minha mão para o Alex e para o Pedro – até logo!
Antes de sair, tinha deixado a janela do quarto aberta e assim continuaria. A noite estava tépida e, da minha cama, podia ver as estrelas, a lua... e o mar, no seu encontro com o céu. Para quê quadros pintados ou fotografias na parede, se me bastava abrir a janela e aí tinha uma paisagem natural, ao vivo... e vozes também! Eram as vozes do Alex e do Pedro. Uma curiosidade, igualmente natural, fez-me apurar o ouvido para conseguir ouvir o que eles diziam... talvez estivessem a falar de mim, do meu entusiasmo no projecto... ou talvez não!
- Que dizes a tudo isto, Pedro?
- Estas a referir-te a quê?
- A tudo...
- Bem, queres saber a minha opinião sobre tudo isto... Mmmm... estávamos a precisar disto há muito tempo.
- Sim, também acho. Isto veio acordar-nos.
- Podes crer, já há muito tempo que não nos sentimos assim...
- Ah, estás a referir-te a isso! E quê, queres tentar outra vez?
- Não sei será justo fazer isto pelo motivo que é...
Ora bolas! Eles estavam a falar por enigmas. Provavelmente, sabiam que eu estava a escutá-los... já acreditava que sim, quando ouvi algo mais esclarecedor.
- E uma pessoa tão forte e, ao mesmo tempo, tão frágil e inteligente também! Iria descobrir que era por sua causa e não admitiria tal coisa. Receio que nunca mais nos perdoaria.
- Concordo contigo. está a ser uma pessoa genuína e, se o fizéssemos, ia achar que estávamos a tomá-la por ingénua, o que não é verdade!
- Mesmo assim, a ideia não me sai da cabeça...
Já sabia que estavam a falar de mim, mas... estavam a referir-se a quê? O que queriam eles fazer que podia envolver a minha personalidade e a nossa amizade? Estava deveras intrigada, mas a conversa ainda não tinha acabado. Talvez eu descobrisse algo mais.
- Eu sei o que sinto e imagino o que tu sentes, mas...
- Mas o quê, Pedro?
- Pelo que me apercebi, o seu coração já pertence a alguém. Reparaste como interpretou todos os indícios que lhe deste? Levou para o campo da amizade!
- E tu, não lhe deste indícios?
- Não, não me atrevi a tal. Respeito os meus rivais, principalmente quando vejo que eles levam a melhor sobre mim...
- Lamento discordar, sócio! Estava só e agora sente que existem pessoas que falam a sua linguagem. Uma das pessoas, ela não conhece pessoalmente. Outras, sim: somos nós; estamos em vantagem...
- Qual, podes dizer-me?
- Conseguimos comunicar só com o olhar; entendemo-nos até melhor com o olhar do que com as palavras, não achas?
- Sim, tens razão. O olhar... aquele olhar diz tanto... contudo, por vezes, receio estar a entender tudo errado...
- Receios! – interrompeu o Alex – deixa-os na gaveta e vai à luta, se achas o que sentes o merece. Eu, como já viste, já comecei!...
Deitei-me sobre os lençóis da cama, ainda vestida e fechei os olhos para reflectir. Depois de mais umas palavras em tom de despedida, não ouvi mais vozes: apenas a porta de entrada a abrir-se e a fechar-se e, depois as portas dos seus quartos.

Quarta-feira, 6 de Setembro de 2000
Tinha adormecido mesmo assim, vestida e só acordei de manhã, com a luz do sol a entrar pela janela do quarto. Levantei-me e fui para o duche. Eram oito e meia e eu ainda teria tempo de desfrutar a pressão da água na minha cabeça e nos meus ombros. Estavam um pouco tensos e eu massajei-os. Entretanto, veio à minha memória a conversa que tinha ouvido na noite anterior e massajei-os ainda com mais força – não estava a resultar. Por um lado, tinha o Pedro e o Alex a pensar que sabiam o que sentiam por mim; por outro, eu a fugir, mais uma vez. Receava tanta coisa! A confusão de sentimentos, pois os envolvimentos emocionais levam-nos, quase sempre, a este tipo de ilusão; que um envolvimento destes trouxesse conflitos a sociedade que ainda era uma criança – precisava de crescer e do nosso suporte; que eu própria me deixasse levar na “onda” da emoção, dos sentimentos que eles diziam ter e os meus próprios, também e... bem, não seria nada agradável sofrer as consequências de mais um erro, logo agora, que eu dizia serem os primeiros dias do resto da minha vida. Os meus planos eram ficar naquele lugar até aos últimos dos meus dias e um erro destes iria obrigar-me a partir, para não mais regressar.
Saí do duche impulsionada apenas pela minha habitual pontualidade. Vesti-me, bati à porta de ambos os quartos e disse: “Bom dia! Espero-vos lá em baixo!”. Enquanto esperava e tomava o meu café, no qual o Juan tinha aplicado o seu maior cuidado para que saísse conforme eu gostava, pensava se iria conseguir segurar o meu olhar, quando estivéssemos juntos. “Mas é claro que sim! Agora, mais do que nunca!”, pensei eu. Entretanto, os meus olhos foram tapados por duas mãos que chegavam por trás de mim. Contudo, as mãos não pertenciam ambas à mesma pessoa. Sem nada me perguntarem, respondi:
- Esquerda: Pedro; direita: Alex... e a mão que está nas costas da minha cadeira é do Alex, também.
Ambos me beijaram a face em simultâneo, um de cada lado e, mais uma vez, agi impulsivamente: imediatamente a seguir aos beijos na minha face, virei-a para a direita e, assim, a minha cara ficou a escassos centímetros da do Alex, olhos nos olhos, que o petrificou, pois ele ficou naquela posição, sem se desviar um centímetro. Aquele momento, que durou segundos, parecia-me estar a durar um século: o seu olhar queimava-me. Tanta coisa foi dita naquele olhar e, no entanto, as minhas dúvidas permaneciam intactas. Não, aquilo que me foi dito pelo seu olhar foi realmente algo que acendeu uma chama em mim, mas essa chama não foi iluminar o meu sentido de certeza, de garantia sobre a lealdade da minha interpretação. Finalmente, ainda sem cair o olhar, rompi o silêncio:
- Dormiram bem, guapos? Parece-me distinguir umas olheiras profundas nestes teu olhos... – disse, dirigindo-me ao Alex.
- Nestes meus olhos quê? – perguntou ele.
- Castanho profundo que, quando recebem a luz do sol, tomam a cor do mel. – continuei ainda magnetizada pelo seu olhar tão forte e passando um dedo, suavemente, pela linha que definia as referidas olheiras. – Quanto ao Pedro, ainda não sei...
- Porquê? Ainda não olhaste para ele? – indagou.
- Monopolizaste o meu olhar... – respondi – agora, se me dás licença...- dirigi os meus olhos para os de Pedro – Pedro, afinal, quantas cores se conseguem encontrar nos teus olhos? Ontem à noite eram cinza; agora... verde azeitona...
- Sim? – pegou-me nas mãos e fez-me levantar, pondo-me às suas duas horas, com o sol a incidir directamente nos seus olhos – E agora?
- Deus meu, cor leonina... tens mais cores, aposto!
- Sim, mas mostro-te mais tarde. Agora temos que ir – respondeu ele, refreando a conversa.
Acedi que sim, com um certo alívio. No entanto, dei a entender que mantinha o meu interesse na mutação. Estava a entrar no jogo deles, plenamente consciente dos riscos que correria, de não sair a ganhar. Entrei no carro, fechei a porta e fiquei à espera que eles entrassem. Antes, já com a mão na porta, mas sem a abrir, ouvi o Alex perguntar ao Pedro: “Não percebi... o que foi aquilo?”. Não recebeu resposta ou eu não a ouvi. Entraram e seguimos para Málaga. Não havia trânsito e, por isso, passava um quarto de hora das nove, quando chegámos ao centro. Parei o carro.
- Esperam um pouco por mim? Venho já...
Sem esperar resposta, saí e dirigi-me ao banco onde tinha conta. Entrei. Provavelmente, eles iriam aproveitar para falar sobre aquilo que ainda não sentiam a vontade para falar na minha presença. Quando fui atendida ao balcão, disse-lhe ao funcionário que precisava de levantar mil euros antes de passar a semana de depósito garantido, pois tratava-se de uma urgência. Não puseram qualquer problema. Explicou-me que só precisava de manter o valor minimo durante essa semana. Todo o excesso podia ser levantado em qualquer altura. Entregaram-me o dinheiro num envelope adequado e informaram-me que o livro de cheques seguiria na próxima segunda-feira, por correio. Agradeci a atenção, despedi-me e regressei ao carro.
- Por mim, já podemos seguir. Não precisam de nada, aqui no centro? – acenaram-me que não e continuámos até ao porto. Faltavam cinco minutos para as nove quando chegámos a agência do Mariano. Quando entrámos, ele estava ao telefone. Quando desligou, veio cumprimentar-nos.
- Bom dia! Como estão? O vosso entusiasmo está estampado nos vossos rostos...
- Realmente, estamos muito entusiasmados, Mariano, mal podemos esperar pela chegada do sr. Ramirez! – respondeu o Alex.
- Ele está a chegar. Estava a falar com ele ao telefone, quando vocês chegaram... Aí está ele!
Quando ele entrou, deram-se as apresentações.
- E com todo o prazer que vou fazer negócio com uma excelência em negócios, Alex. – disse o sr. Ramirez.
- Não é só comigo que vai fazer negócio, sr. Ramirez: eu, o Pedro e a Helena somos sócios. Eu só dirigi a negociação do terreno. O contrato será assinado por nós três na parte que diz respeito ao segundo outorgante. Mariano, podes começar a ler o contrato em voz alta?
O Mariano acedeu que sim e começou. Estava atónito pela frieza do Alex no seu contacto com o sr. Ramirez. Não conhecia essa sua faceta. Quando terminou, perguntou se havia algo a alterar. Todos responderam que não e ele procedeu a entrega do contrato ao sr. Ramirez para que fosse assinado por ele, no campo de primeiro outorgante.
- Muito bem, sr. Mariano – rematou – estaria eu a abusar do seu tempo, se lhe pedisse para tratar da marcação da escritura?
- - Não, de maneira nenhuma, sr. Ramirez, basta que assine uma procuração. O senhor não se esqueceu, com certeza, de trazer as cópias dos documentos do terreno...
- Não, na verdade não foi esquecimento: simplesmente não se encontram comigo. Ontem, pensei que tinha, mas quando as fui procurar e não as encontrei, lembrei-me que as tinha entregue ao engenheiro que estava encarregue do projecto, na altura e nunca mais as devolveu. No entanto, sempre se pode pedir uma outra cópia autenticada a Conservatória.
O Mariano ia falar, mas o Alex interrompeu.
- Não há problema, sr. Ramirez. Podemos ir lá agora mesmo. Mariano, vamos levar o contrato connosco e vamos com o sr. Ramirez à Conservatória. Ele vai requisitar a cópia dos documentos. Quando estiverem prontos, o sr. Ramirez vai trazê-los aqui à tua agência e tu entras em contacto connosco: nesse mesmo dia, viremos cá buscá-los e deixamos-te o contrato devidamente assinado, ok?
- Não precisam de perder tempo em vir comigo à Conservatória...
- Oh sim, precisamos, sr. Ramirez! Queremos ter a certeza que os originais se encontram em ordem e que as cópias serão requisitadas ainda hoje. Como lhe disse, não temos tempo a perder e temos de saber se o terrenos vai ser nosso ou não. O sr. Ramirez não estava à espera que assinássemos o contrato, sem ter esses preciosos documentos mesmo debaixo dos nossos narizes, pois não?
Ele olhou-nos, mas não respondeu e o seu lábio inferior tremeu. O Alex pegou na minha mão, puxou-a para as suas costas e apertou-a. Interpretei tal acto como um sinal para reparar no nervosismo do individuo, visto que a sua outra mão estava nas costas de Pedro, provavelmente, para lhe dar igual sinal. No entanto, esse último gesto foi curto, ao passo que a mão que segurava a minha, continuava a apertá-la com firmeza, o que me fez entender que ele estava a pedir a minha força. Respondi ao seu pedido: apertei a sua mão e encostei-me a ele. Senti os seus músculos a latejar e olhei-o. A sua face continuava inalterável, fria como uma estátua e, de perfil, pude aperceber-me que o brilho dos seus olhos, neste momento, era de uma linha de gelo que se definia na sua atitude. Neste mesmo momento, nunca lhe poderia ter dado o “corte” que, noutra altura qualquer, não hesitaria em dar e entrelacei os meus dedos nos seus, apertando, para que ele sentisse a força que me tinha pedido. Despedimo-nos de Mariano e fomos para o carro para seguir o sr. Ramirez até à Conservatória. Entretanto, o Pedro parou. Disse:
- Alex, espero que não fiques aborrecido comigo, mas preciso de ficar a falar com Mariano sobre a licitação da escola. Não te importas de passar aqui, na volta, para me apanhares? A não ser que precises de mim – esta última frase disse-a mais alto, fazendo questão que o sr. Ramirez ainda a ouvisse.
- Não, Pedro, não será preciso. Passamos por aqui na volta, para te apanhar. até já! - entrámos no carro e ficámos a espera que o outro fosse posto a trabalhar. – Obrigado... – disse-me ele.
- Porquê? – perguntei.
- Pela força que me transmitiste – dizendo isto, pegou na minha mão, a mesma que ele tinha apertado, momentos atrás, levou-a aos seus lábios e beijou-a prolongadamente – sem ela, ou melhor, se não tivesses respondido ao meu pedido, eu nunca teria conseguido manter aquela postura.
- Para que são os amigos? – perguntei, depois de beijar também a mão dele, ternamente – Estarei presente, sempre que precisares de mim. Se não fisicamente, será em espírito, acredita, basta pensares em mim e eu estarei a teu lado.
- Nunca conseguirei compensar-te...
- Já me compensaste...
- Sim?! Como?
- Quando cheguei a Nerja, fizeste-me sentir que tinha chegado a porto seguro e as amarras que me seguram protegem-me de chocar com outros e até de partir à deriva. Amigos para amigos: senti-te amigo, desde a hora em que me encontraste a dançar na areia.
- Por isso, não hesitaste em te aproximar. Confias sempre nos teus instintos? – dito isto e ouvindo o barulho do motor do outro carro, pusemo-nos em marcha. Em parte, senti-me aliviada por não continuarmos de olhos nos olhos. O olhar dele estava a queimar-me, o que não era desagradável de todo, mas era embaraçante para mim. Respondi:
- Tenho confiado e, por isso, tenho saído sempre magoada. Contudo, continuo a confiar: está dentro de mim; aliás, acho que nasceu comigo, esta minha maneira de ser e estar...
- Acredita que, comigo nunca te vais arrepender e posso pôr as mãos no fogo pelo Pedro.
- Nunca me arrependo daquilo que faço: somente daquilo que nunca cheguei a fazer.
- Mais um dos ideais do teu Amigo?
- Não, isto aprendi com uma pessoa que julgava ser meu amigo.
- Não é teu amigo, na realidade?
- Não, meu amigo foi a personagem que eu imaginei, que eu criei na minha cabeça, a partir dele. Não passou de uma fantasia, de um sonho, fruto da minha imaginação.
- Creio que sei o que sentes pela mágoa que ouço na tua voz... Mas então, este episódio do teu passado não está arquivado junto dos teus erros...
- Não, nunca considerei isso como um erro. Não é errado pensares ou sonhares que todas as pessoas são como tu gostavas que fossem. A isto, chama-se esperança.
- Então, eu vou reformular o que disse: acredita que a pessoa que vês em mim, sou realmente eu; o mesmo se aplica ao Pedro...
- Admiro o respeito que têm um pelo outro... – disse e pensei se deveria continuar. “Ora, a carta já está lançada”, pensei e continuei – não consigo imaginar a vossa relação de outro modo.
- Outro modo... como assim?
- Sem esse mesmo respeito, sei lá... por exemplo, não vos consigo imaginar como rivais...
- Explica-te, miúda, onde queres chegar?
Engoli em seco. Tinha que lhe dizer a verdade.
- Eu ouvi a vossa conversa ontem à noite, na esplanada, depois de eu ter subido para o meu quarto.
- Eu sei, a janela estava aberta...
Entretanto, chegamos ao parque de estacionamento da Conservatória. Parei o carro e olhei para ele. Tentei ler-lhe o olhar, mas naquele momento, teria que mergulhar nele para descobrir o que eu queria saber. Mas naquele momento, tínhamos de sair do carro e seguir o sr. Ramirez. Apenas lhe disse:
- Cada vez vos admiro mais! Não te esqueças que eu estou aqui, sempre que precisares de mim.
- Preciso de ti mais do que nunca...
Percebi a mensagem e dei-lhe a minha mão que ele segurou com uma firmeza, qual náufrago que alcança o seu salva-vidas. Seguimos para o edifício. O sr. Ramirez viu-nos de mãos dadas, sorriu e, nervosamente, disse:
- Vejo que vocês são mais que sócios. Felicidades!
Apertei os meus dedos contra os do Alex e ele respondeu:
- Vamos ao que interessa, sr. Ramirez. Não vejo em que isto possa influenciar o nosso negócio.
Ele engoliu em seco. Era o primeiro espanhol que eu tinha conhecido e que não tinha tido qualquer prazer em tal. Esperava não ter que o reencontrar muitas mais vezes! Sentia-lhe asco. Era daqueles indivíduos que eu podia adivinhar ter subido na vida não olhando a meios para atingir os seus fins, tendo espezinhado outros para se manter no pedestal de glória. Meu Deus, como eu abominava pessoas como ele! Lamentei o facto de ser dele o terreno que ia fazer o nosso projecto tomar forma. E ao pensar nisto, penso que o transmiti ao Alex, pois, naquele momento, as nossas mãos quase se fundiam, mas essa sensação de fusão fazia sentir-me bem e eu vi que tinha o mesmo efeito no espírito do Alex. Quando fomos recebidos na Conservatória, pedimos para ver os documentos e, depois de confirmar que estava tudo em ordem, ouvimos o pedido do sr. Ramirez para execução das suas cópias autenticadas. Vimos ele a assinar a requisição e respiramos fundo, de alívio. De repente, Alex lembrou-se de algo.
- Sr. Ramirez, não o vi entregar nenhuma procuração ao sr. Mariano, para o autorizar, perante a Conservatória, a tratar dos trâmites da escritura – falou isto em frente a escriturária e, agora, dirigindo-se a ela, perguntou: - senhorita, é possível tratar da procuração agora mesmo?
- Sim, com certeza. Um momento, por favor. Sr. Ramirez, posso aceder à sua identificação? Preciso disso para elaborar o documento. E o senhor.... Mariano, disse? Pode fornecer-me os dados dele?
- O sr. Mariano é o proprietário da agência Malapuerto. Posso ligar-lhe agora mesmo para lhe pedir os seus dados.
- Agradeço que faça a chamada ali no corredor. Não é permitido o uso de celulares aqui dentro.
- Com certeza – respondeu. Dirigindo-se a mim, disse “Venho já, não me demoro”, piscou-me o olho e dirigiu-se ao corredor de acesso à sala onde nos encontrávamos. Dois minutos depois, regressou, deu os dados à escriturária e ficamos a aguardar a elaboração do documento. Depois de o imprimir, tirou uma cópia do passaporte do sr. Ramirez e trouxe os documentos até ao balcão. Deu-lhe a procuração para que ele a assinasse e, assim que ele terminou, confrontou a assinatura com a do passaporte; só depois o devolveu. Ele estava a sentir-se pessimamente, com tanta desconfiança. A escriturária carimbou o documento e pousou-o em cima do balcão. Não, não lho entregou em mãos; e disse: “São cinquenta euros…”. Olhamos para ele e vimos que ele olhava para nós. O Alex arqueou uma sobrancelha, olhando fixamente para ele, como quem diz “Foste tu que pediste ao Mariano para tratar da escritura… Paga!”. Penso que ele entendeu a mensagem, pois tirou a carteira do bolso interior do seu casaco e pagou. Sem mais nada dizer, saiu. Ficámos à espera do recibo.
- Nós entregamos-lhe o recibo. Ele está lá fora, no corredor. Acho que se sentiu mal, de repente – disse o Alex, sorrindo.
- Pudera, não é para menos! De todos os negócios que ele tem tratado aqui, este foi o primeiro que me pareceu ele não levar a melhor… mas isto é uma informação oficiosa, se é que me fiz entender – sussurrou para que fôssemos os únicos a ouvi-la.
- Esteja descansada. Entendemos perfeitamente. Partilhamos do mesmo sentimento pelo senhor. Obrigado por tudo senhorita... Angela. Lindo nome... Até breve! – dito isto, cumprimentámo-la, pegou outra vez na minha mão e saímos. Quando o vimos no corredor, o Alex chamou-o: – Sr. Ramirez, eis o seu recibo. Assim que os documentos estiverem nas mãos do sr. Mariano, iremos à agência e entregaremos o contrato devidamente assinado por nós. Tenha um bom dia, sr. Ramirez, vemo-nos no dia da escritura! – ao dirigirmo-nos para a saída, o Alex puxou-me até eu ficar a seu lado e colocou o seu braço no meu ombro, acariciando-me o antebraço, conforme íamos andando em direcção ao carro.
- Ouviste o que ela disse? – perguntou ele – Parece que fomos os primeiros a tirar vantagem num negócio com o sr. Ramirez. Isto merece um brinde, não achas?
- Claro! Logo ao almoço ou ao jantar?
- Que tal agora?
- Haha... vou conduzir. Para além disso, o Pedro não está aqui…
- Adoro-te cada vez mais, miúda!
- Estavas a testar-me? Por acaso, pensaste que eu ia querer disfrutar esta alegria sem estarmos todos juntos?
- Não, querida, nada disso. Olha para mim…
- Mais é impossível. Tu é que não estás a olhar…
Virou-se para mim – Sim, tens razão, desculpa. Mas… sabes, por vezes é difícil segurar o olhar contigo. És tão forte…
- E tão frágil, ao mesmo tempo…
- E inteligente também, não te esqueças disso. E por seres tudo isso e, depois de teres ouvido a minha conversa de ontem à noite… não tens nada a dizer?
- O que eu tiver a dizer, direi quando estivermos todos juntos. Quero algumas respostas da parte dele, também.
- A que perguntas?
- Às mesmas que tu já lhe fizeste, sobre o assunto.
- Mas tu já sabes as respostas…
- Não, não vais dizer também que elas estão dentro de mim, pois não?
- Calma, miúda! Não ia dizer isso, pois sei que detestas que o façam… - disse ele, tentando acalmar-me.
- Como é que sabes? – perguntei ainda mais nervosa..
- Porque tu pensas como eu, no que diz respeito a isto: não gostas que te atirem as coisas. Se alguém tiver vontade de te dar algo, que te dê na mão. Tu, como eu, não apanhas nada do chão.
Contrariamente ao que ele poderia esperar, fiquei alarmada... Não, ele sabia que eu iria reagir assim: soube disso pelo seu olhar.
- Como sabes tanto de mim… quero dizer, assim ao pormenor?
- Vamos embora. O Pedro está à nossa espera. Para além disso, a resposta vais tê-la na presença dele, também.
Acedi. Pus o carro a trabalhar e, quando coloquei a mão na alavanca das velocidades, ele colocou a sua mão sobre a minha. Para confirmar que, realmente, eu estava a precisar disso, abri os meus dedos, ao que ele respondeu, entrelaçando-os nos seus. Seguimos assim até à agência.
- Vou chamar o Pedro e despedir-me do Mariano. Ficas no carro ou vens também? – perguntou, ainda com a sua mão entrelaçada na minha.
- Eu também vou despedir-me do Mariano. Tens aí a procuração?
- Aqui está ela – disse, pegando no papel que se encontrava em cima do porta-luvas.
Abri a porta do carro a sorrir e, ia a sair, quando uma força me puxou novamente para dentro. Fiquei a olhar para ele, pois ele continuava a segurar a minha mão. Os olhos dele passaram dos meus para as nossas mãos e disse:
- O teu olhar queima-me, mas aguento esse ardor quando seguro a tua mão… sabias?
- Sim, eu sei…
- Como sabes?!
- Porque sentes como eu; tens medos como eu; e, como eu também, gostas de ser recebido num porto seguro, com uma amarra forte a proteger-te das intempéries – respondi-lhe serenamente e com uma segurança que nem eu me tinha apercebido que tinha. Sorri e disse-lhe: - Vamos, ainda temos que passar no centro para procurar uma impressora e ainda há um brinde a fazer… Ainda se mantém a ideia do brinde, não?
- Claro, não penses que desisti! – respondeu e abriu a sua mão, lentamente, para libertar a minha.
Entramos. Ficaram a olhar para nós em tom de pergunta.
- Então? – perguntou o Pedro.
- Está tudo em ordem. – respondeu o Alex.
- Não, não está! – disse o Mariano – como posso eu tratar da escritura?
- Não te preocupes com isso! Ainda nem tens o contrato assinado por nós… assim que receberes as cópias dos documentos, telefonas-me. No mesmo dia, nós ou um de nós vira cá entregar-te o contrato devidamente assinado. Entretanto, com isto – e mostrou-lhe a procuração – poderás tratar da bendita escritura.
- Alex, tu és um espectáculo! Precisava de uma pessoa como tu a trabalhar comigo…
- Lamento, Mariano, mas já estou comprometido – respondeu-lhe a rir – Ah, outra coisa: quando tiveres marcada a escritura, não ocupes o dia na tua agenda. Virás connosco a Nerja, almoças e jantas connosco; fazemos questão e não aceitamos recusa.
- Perante isto, não tenho outro remédio, senão aceitar – riu-se – aceito com todo o prazer. Tenham um bom dia!
Despedimo-nos e fomos para o carro.
- Então, conta lá! Estou morto de curiosidade – pediu o Pedro
- Conta tu: como ficou a situação da escola?
- O Mariano pediu a licitação para esta sexta-feira e o Governo Civil aceitou.
- Qual é a base?
- Três mil euros.
- Isso inclui o quê?
- Terreno, infra-estruturas, equipamento e a licença para instituição académica.
- Óptimo!
- E vocês, vão contar-me o que se passou, ou não? – perguntou o Pedro
- Fazemos o relatório ao almoço. Agora temos que ir procurar uma impressora. – respondeu o Alex.
Sorri, em tom de agradecimento pelo detalhe da lembrança, ao que ele respondeu com um piscar de olhos. Parámos no centro e fomos à procura de uma loja de informática. Finalmente, encontrámos uma e entrámos.
- Bom dia. Em que posso ajudá-los? – perguntou o empregado.
- Bom dia, precisamos da impressão de uns documentos e estamos à procura de uma multifunções – respondi.
- Quer ver primeiro o equipamento? Se lhe interessar algum, podemos fazer a demonstração com os documentos que deseja imprimir…
- Boa ideia! Então, o que têm?
Mostrou-nos uma variada gama de multifunções e uma delas chamou-me a atenção. O funcionário passou a explicar-me.
- No caso de ter uma câmara digital com cartão de memória ou um telemóvel com “bluetooth”, pode imprimir as fotos, directamente da impressora, sem precisar de usar o computador. Está a ver estas ranhuras? Vários tipos de cartões de memória; este aqui, é para o cabo USB; este dispositivo aqui, é de infra-vermelhos, no uso de “wireless”, principalmente, no caso do “bluetooth”: o código está no manual que segue com o equipamento.
- Quanto?
- Cem euros, com garantia normal, de dois anos; cento e cinquenta euros com garantia extra de mais três anos, ou seja, um total de cinco.
- Que me dizem, rapazes?
- Tu és a “expert” na matéria. Decide tu – respondeu-me o Alex.
- Qual o custo dos tinteiros? – perguntei, dirigindo-me outra vez ao funcionário.
Depois de me ter dado todas as informações necessárias, acrescentou que, se usasse tinteiros reenchidos, a garantia perderia a validade, qualquer que fosse o tipo de avaria.
- Ok, obrigada por nos ter avisado. Vamos querer levar esta... com a garantia normal, por favor.
- Não vão querer a garantia extra?
- Não, nestas condições, obrigada.
- Vai querer levar tinteiros sobressalentes?
- Só o preto. Não vou precisar de suplemento para as cores.
Efectuada a compra, o Pedro pegou na impressora elevou-a para o carro. Despedimo-nos do funcionário e arrancámos em direcção à nossa saudosa Nerja.
- Estou ansioso por chegar... – disse o Pedro.
- Não mais que nós, acredita – respondi.
- Estou com saudades daquele lugar, esganado de fome e curioso pelas novidades.
- Estamos todos, Pedro. Vamos ter umas horas só para nós: os empregados vão ter que se desenrascar sem mim – disse o Alex.
- Bem, as minhas aulas só começam às cinco. Estamos à vontade. E tu, miúda, tens compromissos? – perguntou o Pedro a rir.
- Tenho um compromisso a que não posso falhar, lamento desapontar-te – e ri-me também.
- Quê, posso saber? Vais falar com o teu Amigo?
- Ahah... errado! – respondi – almoçar e falar com os meus sócios e amigos até acabarmos o que temos a fazer e dizer, com todo o prazer e não há nada nem ninguém que me impeça – dito isto, levantei a minha mão direita, ao que eles me responderam com “mais cinco” cada um.
Entretanto, chegámos, parei o carro e saí à pressa, com o meu saco de um lado e as impressões do outro. Disse em tom de desafio: “O último a chegar, come sopa” e comecei a correr, rindo. É claro que o Pedro e o Alex não tiveram qualquer dificuldade em alcançar-me, devido à compleição física. Eu parecia um mascote no meio deles. Chegámos à esplanada do bar e o Alex chamou o Juan.
- Juan, por favor, traz-nos o que for mais rápido de preparar: estamos esfomeados! Três Martinis para a espera. Gracias!
O Juan chegou com os Martinis, pousou-os na mesa e disse que estavam a sair umas “cañas” (parecido com o nosso prato de Tripas à Portuguesa, mas com grão de bico, em vez de feijão).
- Que siga entonces, hombre! – respondeu-lhe o Alex. Depois, dirigindo-se para nós, disse – Vamos lá a esse brinde... Ao primeiro negócio tratado na primeira Conservatória de Málaga, que levou a melhor sobre o sr. Ramirez! Ao nosso sucesso como sócios e como amigos!
- À nossa! – exclamei eu. Depois do brinde, sentámo-nos e eu comecei a falar – Bem, enquanto esperamos pela comida, vou mostrar-vos aquilo que pedi para imprimir. Alex, vê e passa ao Pedro – seguiram-se minutos de silêncio. Por fim devolveram-me os papéis. Fiquei à espera da reacção, mas eles continuavam impávidos e serenos. – Meu Deus, está assim tão mal? – perguntei.
- Está terrível... – disse o Pedro.
- Está terrivelmente maravilhoso – completou o Alex – conseguiste passar a tua poesia para o desenho e, mais tarde, vais passar para algo mais sólido, mais real: o nosso bar! O nosso restaurante! A nossa academia de surf! És uma delícia na tua arte, querida – disse ele, pegando numa das minhas mãos.
- A academia vai ser o sonho dos jovens; o restaurante, o dos apaixonados; e o bar, o dos que gostam de comemorar cada minuto da sua vida. – disse o Pedro.
- Ora, temos aqui outro poeta! – exclamei eu, pegando na sua mão. Senti-o estremecer, mas não fugiu. Tomei a sua mão e a de Alex e juntei-as às minhas, em cima da mesa e falei, mais uma vez – Quero que tenham consciência de que o meu objectivo não é ficar rica. É claro que a publicidade vai trazer mais clientes, mas é uma publicidade selectiva: só para quem entender a nossa mensagem; só quem procurar paz, liberdade, enfim, felicidade, a vai encontrar neste lugar paradisíaco.
Entretanto, os pratos chegaram à mesa e “atacámos” com toda a força. As emoções fizeram abrir os apetites e só falamos mais uma vez, quando os pratos já estavam vazios.
- Sobremesa? – perguntou o Juan, ao tirar os pratos vazios.
- Para mim, a sobremesa vai ser o que vocês tem para me contar – respondeu o Pedro.
- Eu só quero “aquele” cafezinho – disse eu.
- Eu também! Não queres café, Pedro? – perguntou o Alex.
- Sim, está bem!
- Três cafezinhos, Juan, por favor.
O Juan chegou com três cafés muito bem tirados: curtos e cremosos – o expresso que os “portugas” tanto apreciam. Começamos, finalmente, a contar ao Pedro o que se tinha passado, desde que o deixamos na agência, inclusive a impressão da escriturária em relação ao velho magnata; a maneira como ela verificou a sua identificação, como se não o conhecesse de lado nenhum; e a maneira como ele reagiu às nossas atitudes de desconfiança e frieza em relação a ele.
- Mais uma vez, peço desculpa por não ter ido também, mas achei que nos pouparia tempo se entretanto ficasse a tratar do assunto da velha escola. Por outro lado, confiei que a Helena iria dar-te o apoio que precisasses
- E deu, realmente! Ela foi espectacular, mais uma vez! Se os lugares estivessem invertidos, por muito que eu tentasse, nunca conseguiria dar-lhe a força que ela me deu – respondeu o Alex.
- Não te subestimes – repliquei – tenho certeza que, tanto tu como o Pedro me dariam o mesmo suporte que eu te dei. E vocês vão ter mais que oportunidades para provarem que estou certa, num futuro próximo.
- Por falar nisso, passamos ao assunto seguinte? – perguntou o Alex.
- Sim, claro – respondi, sorrindo com ternura. Sabia que ele, mais do que eu ou o Pedro, estava ansioso por falar sobre isso – queres começar tu?
- Ok – respondeu e começou – Pedro, eu sabia, mas não sei se tu reparaste que, enquanto faláv

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