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A Chave - Capítulo IV – A Mágoa

Quinta-feira, 7 de Setembro de 2000
Acedi e adormecemos assim, abraçados, com o nosso suor a misturar-se em cocktail, saciando a sede das musas do Amor. Adormeci a pensar num poema e, quando acordei, ainda pensava nele. No entanto, havia algo de estranho: apesar de belo e a falar sobre nós, o poema não era meu. Sentia que me pertencia, mas não foi criado por mim. Nunca tinha tido esta sensação. Não era desagradável de todo, apenas estranha. Não fiquei a cismar nisso. Vi as horas: ainda era cedo para me levantar, mas já não eram horas para adormecer outra vez. Fiquei recostada na cabeceira da cama, apoiada no cotovelo, olhando para ele e acariciando-lhe os cabelos. Ele suspirou e eu receei tê-lo acordado... mas não: continuava a dormir com uma expressão feliz, quase sorrindo. Levantei-me devagarinho e fui à procura de papel e algo com que escrever. Encontrei uma agenda na sua secretária e uma caneta. Abri-a na primeira página em branco da secção Notas e comecei com uns pequenos sarrabiscos na margem da folha. De repente, comecei a escrever o que estava a vir à minha mente: o poema. Eis que ele passava, através da minha mão e da caneta para o papel:

Pensei em não voltar a ver a luz do sol,
Como sinal de que me encontrava vivo.
Não vivo de coração e mente a funcionar,
Mas sim vivo de alma, plena de sentimentos.
Voltar a sentir, foi renascer,
Voltar a abrir os olhos e vê-la a meu lado;
Estender o meu braço, sentir a sua pele,
Macia como a de um bebé;
Ouvir os seus suspiros, ver os seus sorrisos, sonhando
O perfil do seu corpo feminino debaixo dos lençóis,
Deixando-me mergulhar no rio de águas puras
E corrente forte do seu olhar
Ah, como é bom deixar-me ir na corrente
Até ao seu estuário, onde posso sentir a sua luta
Pela entrada no oceano, cheio de mistérios e perigo
E gritar com toda a força dos meus pulmões,
Incitando a sua coragem, dando-lhe força,
Toda a força que ela precisa para seguir em frente.
Sigo-a no seu destino desconhecido,
Porque, desde o dia em que a vi dançar na areia,
Deixaram de existir dois caminhos solitários:
O seu é o meu também: somos, agora, um só ser,
Seguindo um só caminho, iluminado pelo amor,
Aberto pela coragem e pela força da alma
E não será a paragem de um coração, a morte de um corpo
Que nos vai separar: estaremos sempre lado a lado...
Sente-me como eu te sinto, alma minha!

Quando acabei de escrever, fiquei a olhar para a minha mão, como se de um fantasma se tratasse. Levantei-me, de repente, da cadeira onde me tinha sentado, quase fazendo com que esta caísse. Pousei a caneta e levei as pontas dos dedos às minhas têmporas.
- Que foi, querida? Que aconteceu? Sentiste-te mal? – perguntou-me o Alex.
- Desculpa, acordei-te...
- Não, já estava acordado. Estava a ver-te a escrever e a deliciar-me com as tuas feições, enquanto o fazias. Mas agora... porque ficaste assim?
- Se eu te pudesse explicar o que aconteceu... nunca me aconteceu antes. Lê isto, por favor. – respondi, dando-lhe a agenda para as mãos, aberta na página onde tinha escrito o poema.
Durante uns momentos, enquanto ele lia, caiu um silêncio no quarto. Senti a garganta e os lábios secos e fui encher um copo com água. Estava a tremer e a jarra tilintou no copo que estava a encher.
- Enche um para mim, por favor – pediu-me.
Assim fiz e, levando os dois copos, sentei-me na beira da cama, passando-lhe um deles para a mão. Ele bebeu, sem parar, até o copo ficar vazio.
- Queres mais? – perguntei. Acenou-me que não. Bebi o meu e fiquei à espera do que ele me iria dizer. Ele continuava com o olhar fixo naquela página. – Não dizes nada?
Quando dirigiu o seu olhar para mim, vi que os seus lábios tremiam e os seus olhas brilhavam de uma forma extraordinariamente bela. Finalmente, encontrou palavras e estas saíram com uma voz rouca pela emoção que sentia.
- Tu entraste no meu sonho, ouviste o meu poema e passaste-o para o papel, com uma fidelidade única, palavra por palavra! Como conseguiste? Falei durante a noite?
- Não que eu ouvisse... mas, de certo modo, o deves ter comunicado. Adormeci depois de ti, já a pensar no poema e acordei da mesma forma: fui impelida a procurar um papel e uma caneta para o escrever. Sentiste medo ao constatar o que aconteceu?
Ele olhou para mim longamente. Depois, respondeu-me com mais calma, com uma calma aparente, talvez para não me assustar.
- Não, Só fiquei emocionado – disse-o, baixando o olhar.
- Porque me mentes? – quase gritei – tu sabes que não foi isso que o teu olhar disse! Olha para mim, por favor – disse, ficando à espera que ele o fizesse – eu também senti medo e não o nego! Nós estamos juntos, mais próximo é impossível; e é assim que vamos enfrentar os nossos medos. Ao fugir deles, corremos o risco de corrermos cada um para o seu lado e, sós, nunca os conseguiremos vencer! Ao negares o que teu olhar me disse, estás a renegar o poema que me transmitiste... não vês isso? – peguei nas suas mãos e coloquei-as sobre o meu peito – por favor...
- Desculpa, mais uma vez falhei – disse ele, quase a chorar – temos os mesmos medos, mas por razões diferentes. É por isso que, enquanto tu os enfrentas, eu fujo deles.
Olhei para ele com um desapontamento no olhar que até um tolo conseguia ver e disse: - ao dizeres-me isto, só posso chegar a uma conclusão: não foste só tu que falhaste. Eu também falhei no que pensava ter aprendido sobre ti... lamento, lamento muito – levantei-me e dirigi-me à mesa onde se encontrava o jarro de água. Enchi outra vez o copo e bebi um pouco. Ao deslizar pela minha garganta, senti que estava gelada e tive a sensação que as minhas veias tinham sido invadidas por um sangue tão frio quanto a água que bebi. Pousei o copo e senti um arrepio. Senti-me só, apesar da sua presença naquele quarto. Entrei em pânico e corri em direcção ao meu quarto. Depois de entrar, fechei a porta e fiquei encostada a ela, escorregando até ficar sentada no chão, com a cabeça entre os joelhos e os braços cruzados a frente das pernas. A atitude “avestruz” não ia levar-me a lado nenhum, mas naquele momento, não me sentia com forças para sair dela. Tinha-me enganado, mais uma vez; tinha visto nele, não aquilo que ele era, mas sim aquilo que eu queria ver. Sentia-me prisioneira da “máscara-espelho” e estava a perder a esperança de me libertar dessa maldição. Não sei há quanto tempo me encontrava ali, quando ouvi a sua voz do outro lado da porta.
- Helena, por favor, deixa-me entrar – como não ouviu resposta, continuou – querida, não te isoles e não me deixes só. Tenho medo e quero enfrentá-lo contigo. Vamos continuar o poema, suplico-te, preciso de ti e sei que precisas de mim. Deixa-me entrar, por favor!
Deslizei para a parede, para desimpedir a porta, mas na mesma posição – Entra. - imediatamente ele abriu a porta e entrou – Fecha a porta, por favor.
Ao ouvir a minha voz a vir daquela direcção, fechou a porta e prostrou-se de joelhos, à minha frente. Afastou-me os braços, suavemente e envolveu a minha cabeça nas suas mãos, fazendo-me levantá-la até o meu olhar ficar ao nível do seu. Os seus olhos estavam vermelhos por ter estado a chorar copiosamente. Ao ver o meu olhar, ele estremeceu. Sentiu o gelo que percorria as minhas veias e se espelhava ali, à sua frente. Não, eu não tinha chorado. As minhas feições estavam desfiguradas pela amargura que sentia naquele momento. Afinal, eu tinha sido traída pela força da minha vontade, pelos meus sonhos, mais uma vez. O calor das suas mãos na minha cara davam-me conforto, mas sentia que não podia confiar no que sentia. Contudo, era uma luta que eu sabia não conseguir vencer, porque o amava. Ali estava eu, envolta numa capa de protecção que começava a romper-se, perante o seu olhar tão penetrante. Não, não podia continuar assim! Quantas vezes eu precisava de sair magoada, para acordar de vez? Não, desta vez, tinha sido para acordar à primeira! Levantei-me, fugindo do seu olhar e do calor das suas mãos.
- Dá-me uma oportunidade de te provar que, apesar de eu ter falhado, tu não estavas enganada. Fui fraco e fiz-te sofrer. Dava a vida para poder voltar atrás e poder corrigir o mal que te fiz! Ao tentar proteger-te dos meus medos, fiz com que os teus voltassem a invadir-te e não me perdoo de tamanha estupidez.
- Vou explicar-te uma coisa e espero que compreendas: eu estou amaldiçoada pela “máscara-espelho”. Quando te conheci, pensei que, finalmente, ia conseguir viver e ser feliz, mesmo sob essa maldição. Mas hoje, deste-me a prova vital para ver que estava enganada. Ao negares os teus sentimentos, mesmo depois de eu os ler no teu olhar e ouvido no teu poema... como posso dar-te eu mais uma oportunidade se, a qualquer momento, corro o risco de voltares a negar-te, perante mim?
- Tu nunca falhaste?
- Oh sim, muitas vezes... depois de estar cansada de ver os outros a falhar. E digo-te já que uma dessas falhas custou uma vida humana... mas sabes o que essa vida me fez antes? Isto que estás a ver agora mesmo: a mágoa transformada em gelo; um corpo transformado em pedra, quando perdeu a alma que continha, a alma que ama incondicionalmente – tentei respirar fundo, mas o ar não passou da garganta.; tentei não pestanejar para que as lágrimas não caíssem – não quero falhar outra vez, Alex! Amo-te muito e é em nome desse amor que renuncio a momentos etéreos de felicidade que, sei de antemão, terão uma vida curta, interrompida por momentos longos de sofrimento. Não quero perder de novo a alma que demorei séculos a recuperar... perda essa que quase custou uma outra vida: a minha. Prefiro viver para sempre com o buraco negro da solidão no meu coração. Pode ser que, um dia, a “máscara-espelho” se canse de um corpo sem brilho e me liberte.
- Só posso respeitar-te e admirar a tua maneira de ser e estar na vida e, se não for exigir demais, só te peço que me olhes nos olhos, mais uma vez, nem que seja a última vez que o faças.
Ele sabia o que estava a pedir e eu tinha plena consciência que o gelo se quebraria com o seu calor. Demorei um pouco a responder, o que o fez pensar que se tratava de uma recusa. Quando o vi dirigir-se para a porta, lancei-me em seu alcance e agarrei a sua mão direita, fazendo-o voltar-se para mim. Ficámos assim durante momentos e aquilo que eu previa estava a acontecer. A chama do seu olhar começou a aquecer o meu coração e a derreter o gelo do meu olhar; as lágrimas começaram a cair. A sua mão apertou a minha, que se ofereceu, sem resistência, para o entrelaçar de dedos. Elevou-a ao nível do seu peito, sem que os olhares se desviassem.
- Chora querida, deita cá para fora toda a mágoa: não a guardes, pois mágoa transforma-se em ódio e eu nunca me perdoaria se, um dia, tu me odiasses. Tu sabes o quanto eu te amo. Não prometo nunca mais falhar, mas uma coisa eu tenho a certeza: nunca mais te mentirei. Tu não mereces isso e eu fui um estúpido ao tentá-lo, por muito nobres que os motivos fossem.
Aninhei-me no seu peito e chorei até não ter mais forças para tal... ou terá sido o conforto do seu abraço que fez desaparecer a mágoa que sentia? Qualquer que fosse o motivo, eu estava a sentir-me melhor. Continuava a lutar contra a “máscara-espelho” e entreguei-me totalmente ao amor que sentíamos um pelo outro. Ficámos assim até começarmos a ouvir vozes lá fora, na esplanada. Olhámos para o relógio que se encontrava à cabeceira da cama: eram nove horas e as pessoas começavam a dirigir-se para a praia. A esplanada era o melhor acesso, principalmente para quem tinha crianças e para os mais idosos. O Juan já estava a colocar as cadeiras na esplanada.
- Volta para a cama. Não dormiste quase nada! – disse eu.
- Só se vieres comigo. Preciso do teu colo para adormecer – respondeu sorrindo.
- Ok, eu vou adormecer-te, mas depois desço. Vou tomar o meu cafezinho na esplanada, escrever um pouco, instalar a impressora... enfim, o que for necessário.
- Vais contar-lhe o que aconteceu?
- A quem, ao Pedro?
- Não, a ele...
- Não costumo entrar em detalhes tão íntimos com ele. Ele até pode notar algo de estranho na minha escrita e denuncia-o, mas nunca pede detalhes. E tu, vais contar-lhe?
- Achas?! Acho que se eu lhe contasse o que se passou, nunca me perdoaria.
- Eu perdoei...
- Tu amas-me...
- E o amor de amigo não conta? Lembras-te do que te disse? Há várias maneiras de amar.
- Sim, eu sei, mas também sei que ele me perdoaria mais depressa se o tivesse magoado do que a ti. Ele tem uma grande estima por ti.
- Eu sei e eu dou-lhe muito valor também. O amor de amigo está presente entre nós. Sabes que ele me deu a entender que talvez viesse até cá? Por falar nisso, ainda não falei com ele, desde então. Vou ver se o encontro hoje.
- Se o encontras?!
- Sim, on-line, no Messenger. É por lá que falamos sobre o trabalho em conjunto: o livro.
- Acho que vou ter ciúmes desse vosso encontro... – disse isto muito sério e, depois, a sua boca abriu-se num sorriso, naquele sorriso que me inspirou logo na primeira noite em que nos conhecemos – Anda, vem adormecer o teu menino mimado – pegou-me na mão e puxou-me atrás dele.
Mal a porta do seu quarto se fechou atrás de nós, a cena da tarde anterior repetiu-se: sentei-me na cama e ele deitou a sua cabeça no meu colo.
- Antes de adormecer, quero pedir-te algo...
- O que quiseres...
- Dá-me outra vez o teu sorriso. Adoro ver-te sorrir!
- Em troca do teu. Quero guardar esse tesouro para sonhar com ele.
Sorrimos. Ele fechou os olhos com uma expressão feliz, sonhadora e, enquanto eu lhe acariciava o cabelo, ele adormeceu. Fiquei mais um pouco para ter a certeza que ele não acordaria quando pousasse a sua cabeça na almofada e, enquanto isso, fiquei a admirar as suas feições. Algumas linhas vincadas no seu rosto revelavam ser marcas de um sofrimento recente; algo que ainda não tinha cicatrizado completamente. Tínhamos que unir forças para nos apoiarmos mutuamente: só assim conseguiríamos evitar falhas, fugas e mágoas entre nós. Assim que a sua respiração denunciou um sono mais profundo, saí. Fechei a porta silenciosamente e dirigi-me ao meu quarto para me preparar e sair.
- Buenos dias, Juan, qué tal?
- Bien, y usted, Helena? Hay que salir un cafélito, non?
- Si, gracias, Juan. Me quedo aya para escribir un ratito.
- Que proveche – disse-me, quando regressou com um café espresso cremoso e curto, tal como eu gostava e ele se tinha empenhado em aprender a tirar.
- Tu eres un angel, Juan!
- Si, presupuesto que si! Juan Angeles para servirla.
- Tu eres Juan Angeles?! Qué bien!
- Tu nome tambien te queda bien: Helena de Troya!
- Pero qué no soy Helena de Troya! Solo Helena...
- Pero que eres: para nosotros!
- Gracias guapo – sorri ao cumprimento.
Coloquei o meu portátil em cima da mesa, liguei a bateria, conectei-me à internet e comecei a escrever, mal acabei de tomar o café. Enviei-lhe uma mensagem por telemóvel a informá-lo que me encontrava on-line. Enquanto esperava que ele aparecesse, continuei a escrever. Passou-se uma hora e não houve qualquer contacto da parte dele. Desliguei a minha conexão, acabei o parágrafo e fui para a sala. Instalei a impressora, liguei-a ao computador, fui buscar os cds que tinha posto de parte na estante da aparelhagem e pus-me a escolher os que reuniam as qualidades necessárias Digitalizei as capas seleccionadas e, enquanto se processava a última, fui ao bar buscar os outros cds. Cumprimentei o Manolo. A Luísa e a Patrícia só começavam a trabalhar mais tarde, pouco antes da hora de almoço. Mesmo ali, na mesa de som, fiz a selecção das capas que queria reproduzir e somente essas foram retiradas do bar. Regressei à sala digitalizei as restantes. Juntei-as com as outras para, mais tarde, levá-las à cidade para encomendar a reprodução dos posters. Entretanto, lembrei-me que era necessário fazer uma prospecção de mercado para o material a ser usado na re-decoração do bar. Fiz uma busca na internet para depois elaborar os pedidos de orçamento. Estava embrenhada, de tal forma, nesse trabalho que não ouvi o Alex a aproximar-se, até ele chegar mesmo perto da cadeira onde eu me encontrava sentada. Beijou-me o pescoço e eu aproveitei para sentir, na minha pele, o calor da sua, em contraste com a frescura do seu cabelo ainda molhado pelo duche. Respirei fundo e senti nas minhas narinas aquele seu aroma que já me era familiar.
- Dormiste bem? – sussurrei.
- Como un niño en el cuelo de su madre – sussurrou-me também – pero qué el cuelo se fué y yo viengo a buscarlo.
- Queres enlouquecer-me com essa tua voz sensualmente rouca com acento Andaluz?
- Só se essa me loucura me envolver também...
- Presupuesto qué si, via mia – sussurrei mais uma vez, desta vez, com o mesmo acento.
- Aproximou os seus lábios dos meus para um beijo, mas quando eu ia a corresponder, começou a afastar-se lentamente, fazendo-me levantar e ir em direcção a ele para obter esse beijo. Até que, de repente, com um golpe rápido, lancei-me ao seu pescoço, forçando a proximidade e, por consequência, o já tão desejado beijo. Enlaçou-me nos seus braços e continuou a recuar, levando-me consigo até cairmos no sofá que se encontrava no canto da sala oposto à porta de entrada. Ficámo-nos a beijar longa e ternamente, acompanhando com carícias que nos fizeram esquecer, por momentos, o tempo e o mundo. Por fim, ouvimos alguém bater à porta. Parámos, sem contudo nos desprendermos, e o Alex falou.
- Sim?
- Alex, una llamada de sr. Mariano para usted.
- Já vou Juan, Pede-lhe que espere um minuto!
- Espero que sejam boas notícias – disse eu.
- Anda comigo. Se fôr o que penso, vais procurar o Andy?
- Claro que sim! Vamos.
Eram, realmente, boas notícias. Alex deu-me sinal, larguei as sandálias à porta de casa e saí a correr para a praia. Fui ao lugar onde eles costumavam ficar e lá estavam as suas coisas, mas deles, nem sinal. Coloquei uma mão acima dos olhos em forma de pala e perscrutei a costa. seria difícil reconhecê-los ao longe. Aproximei-me da beira da água e o contacto dos pés descalços com a areia molhada, trouxe-me à lembrança a minha chegada a Nerja e revivi, por uns segundos, o que se passou naquela noite. Sorri... Mas tinha que encontrá-los. Não foi preciso: eles encontraram-me. A Laure veio a correr, salpicando-me as calças de três quartos que trazia vestidas.
- Helena, que surpresa! Vieste ter connosco...
- Olá Laure querida, na verdade, vim roubar-vos o Andy por um par de horas, se não se importarem. As cópias dos documentos do terreno já chegaram à agência do Mariano. Gostaríamos que o Andy fosse connosco para as estudar antes de assinarmos o contrato. Assim, pouparíamos uma viagem. Mas, se quiseres, também podes vir: ainda há lugar para ti, no carro.
- Então, se não se importam, eu também vou. Gostava de passar por Málaga mais uma vez.
- Então anda, chama o Andy.
A Laure chamou-os a todos e levei mais alguns salpicos de mar, desta vez, na blusa também, pois eles vieram todos ao mesmo tempo. Dirigindo-se ao Andy, mas falando para que todos ouvissem, relatou a minha proposta e disse que, de antemão, já tinha aceite.
- Então vais deixar-nos aqui sozinhos – disse a Connie, simulando “beicinho”.
- Não fiques triste, Connie! Em breve teremos a oportunidade de visitarmos Málaga e com mais tempo. Agora é só para resolver o assunto do terreno – respondeu a Laure, já com pena de não poderem ir todos.
- Eu estava a brincar, Laure! Vai lá, querida. Resolvam isso depressa que eu não vejo a hora de ter a minha casinha... – de repente, virou-se para mim – é verdade, ainda não falámos sobre isso depois da nossa mudança de planos...
- Não te preocupes, Connie, falamos disso logo ao jantar... é claro que conto com vocês como clientes assíduos – disse sorrindo.
- Com todo o prazer – respondeu o Rick – Vemo-nos logo!
Despedimo-nos deles e puxei o Andy e a Laure pela mão. Quando chegamos à esplanada, ia esbaforida e os salpicos abundantes de água do mar ainda não tinham secado. O Alex já se encontrava à nossa espera e, com ele, o Pedro. Cumprimentaram-se e eu cumprimentei também o Pedro.
- A Laure também quis vir.
- Pois, agora a Helena não será a única mulher de negócios: eu também sou! – e deu uma gargalhada.
Rimo-nos, encantados pela felicidade que se contagiava entre todos. Fui à sala buscar as capas dos cds e calcei as sandálias, depois de ter tirado a areia dos pés... bem, pelo menos, a maior parte.
- Podemos passar na loja de informática, à volta? Preciso de ampliar umas “cenas” – perguntei.
- Isso é pergunta que se faça? Claro que podemos. Estamos ansiosos por ver o resultado! – respondeu o Alex
Quando chegámos à agência do Mariano e saímos todos, ele veio ao nosso encontro, rindo.
- Ora, que comitiva! Esperavam encontrar aqui o sr. Ramirez, para lhe dar uma lição? Ele não veio: mandou um estafeta. Acho que ele receava este tipo de recepção...
- Oh Mariano, a lição que tínhamos que lhe dar, já lha demos e acho que ele aprendeu muito bem. Pelo menos, no que toca a negócios connosco – respondeu o Alex.
Entretanto, o Mariano já nos entregava os documentos, que passámos directamente para as mãos do Andy.
- Mariano, peço desculpas, ainda não te apresentamos este casal: Andy e Laure. Eles e mais outro casal, ambos dinamarqueses, também decidiram realizar os seus sonhos na paradisíaca Nerja. Depois, com mais tempo, conto-te mais detalhes – disse o Alex, enquanto eles o iam cumprimentando efusivamente.
- Ora, e são cá dos nossos! Daqueles que, quando cumprimentam, apertam com firmeza. Excelentes pessoas, estou certo!
Ficámos todos em silêncio, enquanto o Andy estudava os documentos. Quando ele acabou a última folha, esteve a rever as autenticações das cópias.
- Vocês têm algum documento da Conservatória para que eu possa comparar o carimbo? – perguntou o Andy.
- Mariano, por favor, mostra-lhe a procuração – pediu o Alex.
- Então? – perguntou o Pedro, ansioso.
- Está tudo ok, realmente, mas... depois de ver as características do terreno e a licença que lhe foi concedida, acho suspeito... porque é que ele ainda não o tinha vendido? – comentou o Andy, desconfiado.
- Eu sei – respondeu o Mariano – passo a explicar. Através de meios pouco claros, o sr. Ramirez conseguiu uma licença para restauração num terreno adjacente a outro com as mesmas características, mas já em exploração: o bar do Alex. Graças à tradição do povo de Nerja, ninguém se atreveu a fazer concorrência ao que já existia. mesmo não sendo Andaluz, o Alex cultivou grande amizade e respeito nos nativos. Eis a razão pela qual o sr. Ramirez nunca conseguiu vender o terreno. As licenças demoram muito tempo a obter-se e ninguém se deu ao trabalho de o tentar conseguir para outro ramo.
- Sendo assim, não há nada a temer. Se concordam com os termos do contrato, podem assiná-lo. Fica já resolvida a parte necessária para eu começar a trabalhar no projecto – disse o Andy – sr. Mariano, eu sou arquitecto e estou a pensar em abrir o meu gabinete em Nerja.
- Pode contar comigo para a recomendação a clientes, Andy, e não precisa de me tratar por senhor: Mariano ao seu dispor.
- Obrigado, Mariano.
- Bom, o contrato já está assinado. Queres tirar uma cópia das nossas identificações?
- Sim; sendo assim, hoje de tarde já posso tratar de tudo.
- Agora já podemos dizer que temos um espaço para a nossa toca e para realizar os nossos sonhos, não é querida? – perguntou-me o Alex, aconchegando-me a si com o seu braço a envolver-me as costas.
- Sim querido – respondi e olhei para o Andy e para a Laure – e parece que não somos os únicos!
- É verdade – respondeu a Laure – nós também já antevemos um futuro próspero e feliz.
- Com vozes de crianças à nossa volta – acrescentou o Andy, sorrindo.
Despedimo-nos do Mariano, informalmente, com um abraço caloroso, e seguimos para o carro.
- Temos que parar no centro. Querem aproveitar para fazer alguma coisa?
- Sim, queremos aproveitar para ir contigo... não penses que vos deixamos sozinhos – respondeu a Laure, rindo.
Olhei para o Alex e sorri. Ele beijou-me a testa, como resposta. Deixámos o carro no parque de estacionamento e seguimos a pé para a loja de informática, onde tínhamos comprado a impressora. Quando entramos, o funcionário reconheceu-nos e veio cumprimentar-nos.
- Olá bom dia! Então, a impressora está a portar-se bem?
- Para já, só a usei como Scanner... mas certamente que não ia vender-me um aparelho que não funcionasse, pois não?
- Mas é claro que não! Mas sabe que, por vezes, durante o transporte podem ocorrer anomalias, pequenas desconexões que só precisam de um pequeno ajuste: algo que se desliga lá dentro, entende? Mas se o scanner está a funcionar, o resto também deve estar. O scanner é a parte mais sensível da multifunções.
- Pensei que eram os infra-vermelhos... – reagi.
- O scanner também funciona através de infra-vermelhos. Nesta impressora, esse “chip” está bi-orientado para o scanner e para o leitor de bluetooth.
Fiquei sem argumento e sorri, pelo que recebi também um largo e franco sorriso da sua parte, pela sua vitória, por ter ganho uma pequena batalha de marketing técnico.
- Queria ampliar estas imagens para o tamanho A2, aproximadamente, a preto e branco. Acha que consegue uma boa definição de imagem?
- Venham, por favor. Eu mostro-lhe – dito isto, apontou para a parede – é este tipo de foto que quer?
- Sim, é isso – fiquei espantada com a nitidez da foto, com os vários tons de cinza a fazer adivinhar as cores – mas em ampliação...
- Isto é uma ampliação desta foto – mostrou-nos uma foto pequena, mais ou menos formato A5, a cores – foi feito um zoom de 450%.
- Perfeito! Faça-me uma ampliação desta capa de cd, só para vermos o efeito. Se for o que queremos, faz-se das restantes – disse-lhe, passando para a sua mão a capa do cd de Mago de Oz.
- Mago de Oz! Deus meu, há quanto tempo não os ouço... a música deles faz vibrar todos os sentidos atentos... arrepio-me sempre que os ouço...
- Concordo consigo – respondi, enquanto ele preparava a fotocopiadora para o zoom necessário. Quando a cópia saiu, mostrou-nos.
- Aqui está ela... que acha?
- Esplêndido! Pode tirar as outras...
- A qualidade do papel agrada-lhe ou prefere um mais consistente? Este é de 160 gr/m2...
- Este já é satisfatório, obrigada.
Enquanto ele fazia as restantes, nós ficamos a admirar a alta definição da que tínhamos na mão. Tal como o poster em exposição, vários tons de cinza levava-nos a adivinhar as cores do original. Depois das ampliações feitas, paguei e, antes de sairmos, o funcionário veio com uma embalagem-rolo para que colocássemos lá as reproduções.
- Uma cortesia para bons clientes. Tenham um bom dia!
- Mais uma vez, obrigada, para si também – respondi. Depois, dirigindo-me ao Andy, disse – Andy, se precisares de equipar o teu gabinete, não te esqueças de ter em conta esta loja de informática. Podes obter bons preços, se souberes negociar.
- Senão, sempre podes pedir ajuda à Helena! – disse o Pedro.
- Mas, pelo que sei, aqui o homem de negócios, por excelência, é o Alex. Foi ele conseguiu levar a melhor com a negociação do terreno! – respondi.
Rimos e continuamos caminho em direcção ao carro, para regressarmos à nossa saudosa Nerja. Quando chegamos, dirigimo-nos à esplanada, onde esperávamos encontrar a Connie e o Rick, à nossa espera. E, realmente, eles lá estavam, cada um com o seu “bocadillo” à sua frente, prontos a devorá-los.
- Ora, parece que o ar da praia vos abriu o apetite! – disse eu, rindo.
- Já chegaram! Então, ficou tudo resolvido? O que é isso, aí?
- Os papéis estão em ordem, as dúvidas tiradas, o contrato assinado e um trabalho para o bar aqui guardado – respondi, levantando o rolo acima da minha cabeça – respondi a todas as vossas perguntas?
- Gostávamos de ver esse trabalho... – pediu a Connie.
- Só depois de comerem esses deliciosos “bocadillos” – respondeu o Alex – quando acabarem de comer, venham à minha sala. Vocês, Laure e Andy, é melhor comerem qualquer coisa. Pedro, vens ou também vais comer algo?
- Vou aproveitar para comer uma “tapa”... daquelas que a Patrícia sabe fazer tão bem. Até já – respondeu o Pedro, Depois dirigindo-se ao casal, disse – Venham comigo escolher o que querem comer.
Eu e o Alex entendemos que ele nos queria deixar a sós por alguns momentos e sorrimos-lhe agradecidos, ao que ele respondeu com um piscar de olhos. Fomos para dentro. Apressei-me a tirar os posters de dentro da embalagem, para que eles perdessem o formato de rolo. Pousei-os em cima da secretária, de face virada para cima, com alguns objectos pousados nos cantos. Fiquei a contemplar o que se encontrava no topo, com alguma emoção. O Alex veio ao meu encontro e aninhou-me nos seus braços. Parecia saber o que eu estava a sentir.
- Este álbum significa muito para ti... traz-te recordações que ainda não deixaram curar as tuas feridas. Mas tu és uma verdadeira fera e lambes as tuas próprias cicatrizes para que elas fechem mais depressa, por muito que isso doa. Queres falar?
- O modo de vida deste homem, e o de morte também, serviu de exemplo a alguém que entrou na minha alma e, apesar de me ter magoado imenso, existem boas recordações do tempo que passámos juntos. Sempre que vejo e ouço este homem cantar, a minha pergunta é sempre a mesma, retórica, porque não ouço resposta: “Porquê?”. Vivi até hoje, na esperança de encontrar alguém que me soubesse responder a esta questão, ou que me fizesse esquecê-la. Tu podes não o conseguir, mas a tentativa valerá muito mais do que um possível resultado. Agora sei que, em relação aos meus medos, a minha prioridade é libertar-me da maldição da “máscara-espelho” que tem sido a origem de todo o meu sofrimento.
- Meu amor, lutaremos juntos, como um só ser, até que os nossos medos sejam vencidos, espezinhados. E seremos felizes, lado a lado.
Abraçámo-nos e ficámos assim durante alguns minutos, até que bateram à porta. Era o Pedro e os dois casais. Mostramos-lhes os posters e eles ficaram maravilhados ao imaginá-los já nas paredes do bar. Depois de termos falado um pouco sobre o projecto, eles voltaram para a praia; o Pedro foi trocar de roupa e preparar-se para ir para Tarifa. Entretanto, o Juan veio chamá-lo: era uma chamada do Mariano.
- Provavelmente, é sobre o leilão de amanhã – disse-nos ele. E foi atender.
O Alex e eu iríamos comer algo, para ele descansar, em seguida e, por isso, fomos atrás dele para o bar. Depois de desligar, veio ter connosco.
- Tenho aquilo que poderá ser uma boa notícia: também vai estar em leilão uma carrinha de passageiros que fazia o transporte dos alunos. A base é de mil e quinhentos euros, mas eu gostava de a ver primeiro. Não quero uma carrinha nova, mas quero algo que não me deixe ficar mal a meio do caminho, um dia destes. Querem vir?
- Tu entendes de mecânica? – perguntei.
- O suficiente para não ser ludibriado – respondeu.
- Então, se não te importas, ficamos. O Alex tem que descansar e eu vou trabalhar um pouco.
Despediu-se de nós da forma habitual e seguiu caminho. Depois de almoçarmos, fomos para casa. O bar estava calmo e o Juan “dispensou-nos”. Já na sala, o Alex abordou-me.
- Helena, apesar de todo o teu entusiasmo com o projecto, consigo ver uma sombra de preocupação, ou tristeza, até... passa-se algo?
- Tens tido notícias dele? Eu não...
- Não te posso ajudar nesse aspecto... lamento, querida. Estás desapontada?
- Não, apenas preocupada por não ter notícias; mas não me sinto no direito de invadir o seu silêncio.
- Queres dizer que não vais tentar contactá-lo, enquanto ele não o fizer?
- Não penses que não tenho vontade de o fazer... mas sinto que se o fizer, estou a violar um espaço que não me pertence.
- Nunca saberás se podes entrar, se não bateres à porta...
- Já toquei à campainha... ninguém respondeu...
- Talvez não tenha ouvido...
- Provavelmente, estava ocupado... ficou o registo... ficarei à porta, à espera que ele a abra.
- E se ela não se abrir? Ficarás lá, para sempre?
- Estás a falar como se soubesses algo e não me possas revelar. Não, não te preocupes, não te vou pedir que o faças: eu compreendo... mas também não sei responder à tua última pergunta. Tu sabes... eu reajo por instinto, a maior parte das vezes.
- Sim, eu sei...
- Um dia, ele vai ter que abrir a porta, quanto mais não seja para me dizer “não”.
- Porque faria ele tal coisa?
- O Homem tem razões que a própria razão desconhece... não necessariamente por algo que eu tenha dito ou feito, mas sim por algo que eu tenha deixado por dizer ou fazer... talvez ele...
- Ele o quê?
- Precise de reflectir para tomar a melhor atitude...
- Sobre quê?
- Não sei, querido, ainda não tenho a chave.
- No tempo certo a terás, meu amor!
Colocou as suas mãos sobre os meus ombros e eu inclinei a cabeça sobre uma delas, sentindo o seu calor na minha face. Fechei os olhos. Talvez, mais do que nunca, naquele momento, senti a sua presença. Não física, claro... mas algo me dizia que eu apenas ouvia o silêncio porque não estava atenta a outros sinais. Prometi a mim mesma ficar mais alerta, a partir de agora. Tudo o que eu estava a pensar, estava a transmitir ao Alex, pelo que as suas mãos deslizaram dos meus ombros para se cruzarem nas minhas costas, num abraço envolvente, reconfortante. Ele sabia de algo, disso eu tinha a certeza. Mas eles eram amigos de longa data e o pacto que existia não lhe permitia revelar-me o que se estava a passar. Eu, mais uma vez, entrei no jogo.
- Amor, responde-me só a uma pergunta e prometo-te que, a seguir, abandonaremos o assunto – pediu o Alex.
- Fala...
- O que farias tu, se ele nunca mais te contactasse?
- Não existe um ”nunca” absoluto: o que existe é o “não, enquanto vida”, ou seja o “tarde demais”. Agora vai descansar, meu amor. Eu vou ficar um pouco a trabalhar no lay-out dos posters.
- Por acaso, tinha outra proposta a fazer: porque não vens descansar um pouco e, depois, voltas ao trabalho?
- Já sei, queres um colinho, um miminho... está bem, meu bebé mimado, anda!
- Eu ando, tu não! – dito isto, pegou-me ao colo e levou-me em braços, escadas acima, até entrarmos no seu quarto. Quando me largou na sua cama, caiu em cima dela, pois eu não tinha tirado os meus braços da volta do seu pescoço.
- Amo-te tanto!... – exclamei.
- Também te amo muito – respondeu-me, seguindo a resposta de um beijo imenso de ternura e felicidade.
E ficámos abraçados um ao outro até ele adormecer. Quando senti a sua respiração mais pesada, vi que ele já estava profundamente adormecido e tentei levantar-me, mas não consegui. Estávamos de tal forma entrelaçados que, para sair, tinha que o mudar de posição e, de cada vez que o tentava, ele abraçava-se cada vez mais a mim, mesmo a dormir. Sinceramente, a minha vontade de sair dali também não era nenhuma e, por isso, não insisti. Encostei a minha cabeça ao seu peito e adormeci ao som do bater do seu coração. “Os poster vão ter que esperar para...”, pensei antes de adormecer.
Acordei mais tarde. A minha mão estava sobre o seu peito. Abri os olhos e vi que já não estávamos encaixados um no outro. Contrariei a minha vontade de ficar ali, bem junto a ele e levantei-me. Fui para um duche rápido, troquei de roupa já no que era o meu quarto, para não o acordar e desci com o meu portátil. Liguei-o e conectei-o à impressora. Abri o ficheiro onde tinha o projecto de re-decoração do bar e ampliei as paredes do fundo, onde se encontrava a mesa de som. O bar era pequeno e, se colocasse os posters todos, as paredes ficariam saturadas; para além disso, não podiam ficar muito perto das tochas, o que me deixou uma única solução: utilizaria os posters num sistema amovível, em regime rotativo, talvez dedicando um tema a cada semana do mês.... era isso! E os temas seriam objecto de publicidade!
As ideias galopavam na minha cabeça de tal forma, que tinha de estar cem porcento concentrada no projecto, para que nenhuma delas passasse sem registo. Sendo assim, tive que duplicar os ficheiros, criando uma maqueta para cada tema. Quando terminei, imprimi as folhas e coloquei-as em perspectiva de maqueta. Agora só faltava o material de suporte para lhe dar consistência. Não seria necessário o estratificado; bastava que fosse uma cartolina resistente e algum esferovite. Trataria disso mais tarde. Olhei para o relógio: eram cinco horas, relativamente cedo; não se ouviam vozes na esplanada, sinal de que ainda se encontrava calma, ou até vazia. Abri o ficheiro do livro: iria passar algumas páginas manuscritas para o ficheiro. Enquanto isso, pensava em como teria corrido a visita à carrinha da escola. “Espero que esteja em bom estado. Assim, ficaria mais um pendente resolvido”, falei para mim própria. Às seis horas, já tinha passado seis páginas e decidi ir acordar o Alex. Entrei no quarto e vi que ele já estava acordado e tinha a sua agenda aberta, nas suas mãos.
- Já acordaste há muito tempo? – perguntei, beijando-o.
- Não muito. Decidi ler o poema que te transmiti, enquanto esperava. Sabia que virias para me acordar – respondeu sorrindo.
- Estás a sorrir, mas muito tenso... foi por causa do poema?
- Não, peguei nele para tentar relaxar um pouco...
- Então que se passa, querido?
- Falei com ele...
- Sim?...
- Queres falar sobre isso?
- Depende...
- De quê?
- Se for para me dares boas notícias, tudo bem, mas... pelo que vejo nos teus olhos, as notícias não são muito agradáveis.
- Não, não é o caso. Ele vai entrar em contacto contigo. Só pede que lhe dês algum tempo... entendes?
- Não, não entendo, mas respeito. Ele que demore o tempo que for necessário para ele...
- Já sei... só esperas que o seu contacto não venha “tarde demais”. Não penses assim, querida, o valor que tens para ele não se alterou e ele está contigo, mesmo que não o vejas, não o ouças ou não tenhas notícias dele. Para além disso, tens-nos a nós.
Controlei as minhas emoções e mudei radicalmente de assunto. Um pouco de mim tinha morrido de abandono, mas tinha que continuar a viver. Foi como perder um membro, uma faculdade ou até mesmo um sentido... ou algo ainda mais valioso....
- Então... e o poema teve o efeito desejado? Relaxou-te? – perguntei-lhe sorrindo e acariciando os seus cabelos. Adorava tocar os seus cabelos ondulados, quase formando caracol, macios, com um cheiro que eu gostava de inalar até me chegar aos pulmões. Lembrava-me o aroma dos néctares que eu tinha sentido, juntamente com o da terra molhada, no dia em que me dirigi para aquele lugar.
- Um pouco, mas acho que vou precisar de uma ajuda extra... – respondeu, imitando um garoto traquina a pedir algo, subtilmente.
- Vai indo para o duche que eu já lá vou ter contigo!
- Que vais fazer? – perguntou desconfiado, mas sorrindo.
- Vai lá, eu não fujo! – respondi a rir.
Decidi concentrar-me naquilo que tinha e não naquilo que sentia ter perdido. Quando regressei, levava as mãos atrás das costas, escondendo um frasco de óleo de banho.
- Vira-te... vá lá, parece que estás com medo de algo! Não queres relaxar? – disse, ao que ele obedeceu.
Tirei o vestido, e a lingerie, descalcei-me e entrei no duche, também. Coloquei uma porção de óleo numa mão e pousei o frasco perto dos outros; distribui a porção entre as duas mãos, friccionando-as energeticamente e comecei a massajar-lhe os ombros, levemente e, pouco a pouco, com mais intensidade. Alarguei a massagem para o resto das suas costas, passando por todos os seus músculos e, mais tarde, para o peito. Em alguns minutos foi distribuída por todo o seu corpo. Senti cada milímetro do seu corpo tenso a distender-se num deleite relaxante. Por fim, abraçou-me e o enlace disse tanto! Muito mais do que as palavras que proferiu: “Amo-te mais do que alguma vez pensei ser possível!”. Aninhei-me nos seus braços, ficando a olhá-lo nos olhos e a mensagem passou, ao mergulharmos no olhar um do outro. Amámo-nos mesmo ali, no duche, como se receássemos que o tempo e o espaço nos separasse. Amámo-nos como duas feras que, finalmente, viam as suas feridas curadas, para nunca mais se abrirem. Mais uma vez, esquecemos o mundo exterior e vivemos a fusão tão desejada, que tanto prazer nos dava: a fusão de duas almas amantes numa só.

© © ©

Já no bar, vimos o Pedro a chegar e eu corri a perguntar-lhe como estava a carrinha.
- Haha... – acenou negativamente – não me vou meter naquela geringonça, nem me atrevo a meter lá alguém e andar um metro que seja. Temos que encontrar outra solução...
- Talvez a solução te encontre a ti... – dito isto, acenei em direcção à porta do bar – olá queridos, venham cá – disse, dirigindo-me aos casais dinamarqueses. Cumprimentamo-nos, eles sentaram-se ao balcão e pediram os seus aperitivos.
- Ainda bem que vieram cá.
- Tínhamos que vir. Viciámo-nos no vosso bar! Não podemos passar muito tempo sem virmos aqui – respondeu a Laure.
- Digam-me uma coisa: a velha VW é vossa ou alugada?
- É da Connie e do Rick – respondeu o Andy.
- Herdámos do meu pai – explicou a Connie – ele era um hippie, antes de conhecer a minha mãe. Decidiram as suas vidas juntos e ele abandonou o grupo, mas a velha carrinha ficou de recordação. Esteve parada muitos anos, muitos mesmo! Entretanto, eu nasci, cresci, casei e, quando eu e o Rick a vimos, ficamos apaixonados por ela. Ao ver o nosso entusiasmo, o meu pai mandou-a restaurar, em segredo. Ficou como nova. Antes de morrer, passou-a para o meu nome. A primeira vez que decidimos vir aqui, foi em memória do meu pai. A partir daí, todos os anos, a carrinha faz este percurso. É como fazer esta viagem com o meu pai.
- Então deve ter um grande valor sentimental para vós... – disse eu em tom de conclusão.
- Porque perguntas?
- O Pedro foi ver uma carrinha que vai ser leiloada no mesmo dia que a escola; seria para fazer o transporte dos alunos da academia daqui para Tarifa, mas as condições em que se encontrava não lhe agradaram... e então, eu lembrei-me da vossa VW... mas sendo assim...
- Vocês queriam comprar a nossa VW?
- Sim, seria óptimo, se isso fosse possível... – respondeu o Pedro.
- Esperem um pouco... – respondeu a Connie. Pegou na mão do Rick e levou-o para a esplanada, atrás de si. Passados alguns minutos, regressaram ao bar.
- Ouçam: o meu pai iria adorar voltar a ver Tarifa. Iria adorar, ainda mais, poder voltar lá todos os dias. A resposta é sim, vendemos a carrinha. Por favor, tratem-na com muito carinho.
- Tens a certeza, Connie? Rick, estão a falar a sério? – perguntei, ainda incrédula – Vai ser difícil chegar a um valor justo... – disse, depois do Rick ter acenado afirmativamente.
- O valor em dinheiro será simbólico. O que eu vos peço é que cuidem dela como nós cuidamos até hoje. Para além do que vos contei sobre a personalização do meu pai na carrinha, vivendo outra vez a sentir Tarifa, será um prazer poder ajudá-los como vocês nos estão a ajudar.
- Mas nós ainda não fizemos nada... – respondi a sorrir.
- Ah sim, fizeram – retorquiu – já nos ajudaram a ver a “luz ao fundo do túnel”. E o que têm em projecto vai ajudar-nos mais do que alguma vez podíamos esperar. A cedência da nossa querida VW é um grão de areia perto da imensidão do vosso apoio.
Abracei-a e, depois, puxei o Rick para o juntar ao abraço.
- Estou tão feliz por ter encontrado Nerja! Aqui tenho encontrado pessoas com alma de verdade... tão diferente do mundo em que vivia! – dizendo isto, virei-me para o Alex e exclamei – Com tanta felicidade, apetece-me dançar na areia, tal como na primeira noite!
- Não é um sonho difícil de se realizar, querida... – respondeu ele.
- Não, realmente não é, mas vai ter que ficar para mais logo – disse, com um piscar de olhos.
- Bem, vemo-nos ao jantar. Até já! – disse o Andy.
- Até já! – respondemos.
- Continuamos a trabalhar. O Pedro sentou-se ao balcão com uma expressão de sonhador. Fiz sinal ao Alex, para que ele reparasse e ele sorriu. Saí do balcão para ir levantar umas mesas da esplanada e aproveitei para brincar com ele.
- Então... sonhos a realizarem-se? Hoje um, amanhã outro... Fico feliz ao ver-te feliz – disse e dei-lhe um beijo na face.
- Um outro já está a realizar-se há alguns dias – revelou, a sorrir.
- Sim? Qual?
- Ter conhecido uma pessoa como tu, já foi a realização de um sonho. Para mim, és mais do que uma amiga: és uma irmã! A irmã que nunca tive... – respondeu.
- Eu era filha única, mas já não sou mais, pois tenho em ti um irmão! – ao dizer isto, abracei-o – Todos os dias me dás mais uma razão para me sentir rica: a amizade pura é a maior riqueza que se pode ambicionar. Sabes, hoje de tarde, senti uma perda que me deixou muito abalada e a pensar se não estaria eu a exigir demais dum Amigo. Agora vejo que não: deste-me uma prova que é possível existir tal força e ela encontra-se em ti. Adoro-te, mano!
- Ora! Isto esta a tornar-se complicado! – disse o Alex, muito sério. Ficámos a olhar para ele, perplexos – eu passo a explicar: nós, eu e o Pedro já éramos irmãos; agora vocês também são irmãos... ou eu me perdi, ou então eu e a Helena andamos a praticar incesto! – disse isto e, de repente, soltou uma gargalhada. Saiu do balcão, juntou-se a nós e abraçamo-nos os três – os três irmãos “portugas”! – gargalhada geral.
- Então e nós, o que somos? – perguntou o Juan que, entretanto, entrava no bar.
- O que quiserem – filhos primos, irmãos também... somos todos uma família. Uma família internacional de portugueses, espanhóis e dinamarqueses! – respondi a rir.
Estávamos todos felizes. Naquele momento e ali, só faltava uma pessoa... e como eu sentia a sua falta! Afinal, tinha sido graças a ele que eu tinha acordado para a vontade de procurar o que encontrei naquele lugar: liberdade, paz... enfim, vida!

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segunda-feira, junho 15, 2009 - 22:35

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