Numa hora de esplanada
A par do mundo objectivo que ocupa a quase totalidade do nosso tempo, há um outro de validade comprometida que, por não ser conceptualizável, é constantemente ignorado e relegado para o plano das coisas que não importam; para a arte e para o divertimento.
É de tal modo assim, que em mim chega a causar constrangimento relevante e me inibe na poesia e no pensamento, fazendo-os parecer mera heresia extravagante de um espírito incomodado.
Mas a verdade é que existem duas dimensões de nós e uma delas, a menos óbvia (ou talvez não), radica nesta impressão permanentemente sentida de uma incompletude existencial, que não encontra resposta na trivialidade do quotidiano objectivo e absorvente que nos toma para si, mas se manifesta viva na pena do poeta, na tela do pintor, nos nossos sonhos, no amor e nas crenças mais profundas.
Este "não sei o quê" que subtilmente impregna as nossas vidas e, sem que demos por ela, influencia a nossa acção; este enigmático sentir para lá do sentir,
encontrou em mim a sua expressão no poema que aqui transcrevo e esteve na génese do pensamento que a seguir partilho.
Saudades de um Universo primordial - Finalidade de mim?
Nostalgia maldita
que me arrebatas o coração
vens de fundo e de longe
de um qualquer lugar perdido no tempo
Será esse o lugar de onde venho?
Será esse o lugar para onde vou?
Onde fica afinal?
O que fui ou serei, dir-me-ás tu um dia ó infiel?
Que bocado de mim não se fez vida?
Que ausência esta que persiste?
Oh tormento...
Oh alma minha incompleta.
( deste poema parti então para o seguinte )
Em silêncio, de olhar posto no longínquo horizonte da minha memória, procuro pelo homem.
Ali mesmo naquela mesa da esplanada, absorto, aceno, de olhar vago e abstraído, a quem se me dirige.
Vendo-me assim, sentem-me melancólico, distante, um pouco louco até e não se atrevem a falar-me.
Agradeço a consideração certo de que, não tarda, se esquecerão da minha presença e me deixarão a flutuar nestas águas de ignorância de mim.
Mas eu sou como elas, aquelas pessoas. Apenas agora penso. Não estou triste nem feliz; melancólico talvez, mas sobretudo perturbado.
Perturbam-me a ignorância e a insensatez. Perturba-me o homem despojado de si.
Dizia eu para mim, que não é, em definitivo, domínio exclusivo da criança, do poeta ou do desequilibrado, o pensamento simbólico. Este é antes consubstancial ao ser humano e precede a linguagem e a razão.
Pensava no "homem sem mais"; naquele para onde nos remetem as imagens, os símbolos e os mitos que preenchem os nossos sonhos, mesmo aqueles que temos acordados. Pensava no"homem ahistórico", no ser anterior, naquele que ainda não transigiu com as condições da História; o que ainda não não foi submetido à aglutinação do meio sócio-cultural, última etapa da sua afirmação como "ser que é humano".
Parece-me que cada ser histórico, todo o homem afinal, se apresenta ao Mundo impregnado de uma humanidade anterior à história e à cultura.
A ideia de que o Homem, antes de o ser em plenitude, é um "animal" definido e regido pelo mesmo quadro instintivo dos seus irmãos irracionais, não só não é nova, como reúne uma consensualidade incontroversa.
O reconhecimento desta realidade ou o reconhecimento da existência de um sistema instintivo que é anterior ao Homem e nos convence da sua animalidade, não deverá porém convencer-nos de que aqui se esgota a totalidade do carácter ahistórico do Homem. Antes pelo contrário, continuei pensando, é precisamente neste domínio em que ele nos surge mais próximo da animalidade, que o Homem melhor e mais claramente afirma a sua diferença e singularidade.
Com efeito, a parte ahistórica do Homem, ao invés de se perder no universo animal e na "vida", extrapola o mundo físico do irracional e da inteligência, consagrando-se através do espírito, num plano muito acima da vida tangível, que consubstancia numa memória de uma existência anterior mais rica.
Num momento assim, em que o ser "Homem", historicamente condicionado, se deixa invadir pela realidade não histórica de si próprio, ele não se limita, necessária e exclusivamente, a um movimento regressivo rumo a um estado animal puro, mergulhando nas águas profundas da vida meramente orgânica; antes, através da linguagem dos sonhos, composta de imagens e símbolos fora da contextualização terminológica concreta, ele reintegra um estádio primitivo; um terreno paradisíaco onde reside o Homem Primordial.
Isto explica a nostalgia; a indefinida sensação ou crença, numa existência para além da concreta; a convicção numa realidade primordial, que pela ausência de forma concreta que a materialize, se afirma como um arquétipo impossível de realizar em qualquer existência humana.
Assim, concluo, no momento em que o Homem abandona a sua historicidade e cultura, não abdica de si em favor de uma animalidade irracional fechada, mas antes reencontra a linguagem e a experiência de um paraíso perdido.
Satisfeito, por agora, com a conclusão alcançada, tornei ao mundo. Na mesa ao lado, falava-se da justiça social, na distribuição do capital, na crise, na guerra e na fome.
Bolas, que complicados somos nós.
Submited by
Prosas :
- Login to post comments
- 942 reads
other contents of miguelmancellos
Topic | Title | Replies | Views |
Last Post![]() |
Language | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia/General | Por Saber | 2 | 1.826 | 06/11/2011 - 23:23 | Portuguese | |
Poesia/General | Promessas vãs | 1 | 1.612 | 05/25/2011 - 20:04 | Portuguese | |
Poesia/General | O Pensamento | 3 | 1.477 | 05/16/2011 - 20:26 | Portuguese | |
Poesia/General | O Nada, O Absurdo e a Minha Ignorância | 2 | 1.421 | 05/16/2011 - 20:20 | Portuguese | |
Prosas/Thoughts | A Arte e o Mundo | 1 | 1.558 | 05/14/2011 - 23:05 | Portuguese | |
Poesia/Sadness | Hipocrisia Sem Nome | 1 | 1.853 | 05/10/2011 - 02:08 | Portuguese | |
Prosas/Thoughts | UMA PEQUENA TRAVESSURA,,, | 0 | 1.703 | 05/09/2011 - 22:59 | Portuguese | |
Poesia/General | Sentes??? | 2 | 1.762 | 05/08/2011 - 19:32 | Portuguese | |
Poesia/General | Soturno Silêncio | 3 | 2.130 | 05/08/2011 - 02:31 | Portuguese | |
Poesia/General | Loucura??? | 1 | 1.867 | 05/07/2011 - 16:29 | Portuguese | |
Prosas/Thoughts | O Egoísmo e a Armadilha dos Conceitos | 0 | 1.669 | 05/07/2011 - 12:45 | Portuguese | |
Poesia/General | Quando Partiste | 6 | 1.895 | 04/29/2011 - 12:00 | Portuguese | |
Prosas/Thoughts | Se temos o poder de criar, se nos fazem felizes o céu e a eternidade... Porque não? | 1 | 2.010 | 04/22/2011 - 04:11 | Portuguese | |
Poesia/General | bora fazer daquilo uma TERTÚLIA | 1 | 2.282 | 04/21/2011 - 02:06 | Portuguese | |
Prosas/Thoughts | Pensando o "ser homem" | 2 | 1.758 | 04/18/2011 - 17:01 | Portuguese | |
Prosas/Thoughts | Se Não Fores Tu a Acreditar em Ti, Quem o Fará? | 0 | 2.289 | 04/11/2011 - 20:43 | Portuguese | |
Poesia/General | Digo..! | 2 | 1.994 | 04/08/2011 - 11:29 | Portuguese | |
Poesia/General | Há Palavras Assim | 6 | 1.766 | 03/28/2011 - 17:50 | Portuguese | |
![]() |
Videos/Others | O amigo verdadeiro está sempre LÁ!!! Ver em Full screan. | 0 | 2.987 | 03/28/2011 - 17:32 | Portuguese |
Poesia/General | O Valor, as Coisas e… | 2 | 1.722 | 03/11/2011 - 22:02 | Portuguese | |
Poesia/General | Difícil Dizer | 1 | 1.511 | 03/09/2011 - 01:47 | Portuguese | |
Poesia/General | Distância | 1 | 1.743 | 03/05/2011 - 00:02 | Portuguese | |
Poesia/General | Até Quando? | 1 | 1.942 | 03/03/2011 - 22:45 | Portuguese | |
Poesia/General | Gorada Melancolia | 0 | 1.790 | 02/28/2011 - 20:53 | Portuguese | |
Poesia/General | Solidão | 0 | 1.564 | 02/28/2011 - 20:21 | Portuguese |
Add comment