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A ultima vez no mundo
Eram Janelas enegrecidas, pelo campestre orvalhado, dos infernos do tempo velho…
Assim era a casa da minha tia Clara.
A tia Clara, mouca na idade e muda na nascença, tão velha que fazia um século parecer dez minutos, nasceu aos arrepios quando caiu na pedra fria lá para as berças do mundo, ainda havia monarquia.
Contava-me o meu avô, nascido do mesmo ventre praticamente á mesma hora,
que aos seis anos, a irmã, que foi herdar os genes ao pai e as pernas a uma rã, saía para a mata gélida recolher gravetos para a lareira.
O meu avô que era um género dado a exageros quase roçar o burlesco, tinha na irmã a certeza de dez homens com calças para os respectivos, ficando ele de frágil, no protectorado da minha tia quando o cabo dos trabalhos exigia mão de ferro.
Fui a primeira vez a Mondim, teria eu uns cinco anos, numa viagem estival que se tornou culto anual todas as férias de verão.
Daquele tempo, guardo sombras e verdes difusos, um inverno na alma… e a tia Clara, dona do um silêncio e do assombro.
Pelos dez ou onze anos, amaldiçoada pelo analfabetismo, perdia-se em visões e achava-se em desmaios no meio das videiras.
Visões que lhe valeram vários tabefes e levianas idas ás bruxas, que a queriam possuída, pelo pior belzebu que o dinheiro de dois pais crentes, se disporiam a dar, para que tão sábias figuras tirassem o diabo do corpo á minha tia muda.
Constava pelas bandas que certa vez na lavoura, á conta de um cesto de uvas virado pelo meu avô e pisado a hora incerta, o capataz e o lacaio, sovavam o rapaz em sentido obrigatório, quando um cajado instruído na arte de assobiar umas mocadas ao rebanho, partiu-se em duas metades que interpelaram os crânios ermos dos agressores do meu avô desfazendo-os em ameaças e em fezes assustadas.
Clara a “Brava”, ficou assim em alcunha dita nas missas dominicais e nas feiras da semana entre dentes e com pavor, pelas beatas mais acólitas, pelas mulheres dos capatazes e na boca suja dos lacaios.
Quando chegou á altura, o meu avô foi ás sortes e o destino fez Lisboa o quartel onde o qual ele haveria de servir para sempre.
Apanhou o comboio no Porto e a comissão de despedida, eram os meus bisavôs, e um chibo ainda maduro que insistia em acompanhar a minha tia Clara nos seus passos de silêncio.
Houve lágrimas que se anteciparam ao apito da partida, mas nos olhos secos de Clara, apenas o sombrio de todas as perdas que lhe cruzaram a vida num ponto cruz sepulcral e mudo.
O meu avô uma “donzela”, que agigantava os pormenores, recostou-se nas lembranças da sua irmã…a “brava”!
Sentado no comboio, viu-se então de mãos dadas a entrar no pátio da escola que a tia nunca frequentou…
Via a irmã na lavoura a virar trabalho de homem, com uma jorna miserável íntegra como um surdo.
A irmã nas festas da aldeia a girar no jogo do pau quando lhe “chegavam os azeites”, assim que cheirava a esturro…
Ela a protege-lo calada na solidão, que reconhecia o cheiro do útero.
Passaram-se os anos, os meus bisavôs finaram-se e as lágrimas da minha tia foram mudas no enterro.
A tia Clara ficou só.
Só nos cabeços da serra, na chacota das beatas esposas dos lacaios que tinham cornos na missa.
Só mais o trabalho, as videiras e as peras e a névoa de Mondim…
Nunca casou…ninguém a queria…ela não queria ninguém.
As sortes do meu avô, deram na sorte de conhecer a minha avó, que deu na sorte do meu pai que teve a sorte da minha mãe, que deu na sorte de eu nascer.
A minha tia em Mondim ia envelhecendo muda no meio das videiras nebulosas.
Íamos lá todos os verões e sempre tudo me pareceu escuro, como a tia sem sorriso e sem palavras na boca.
Porem, um inverno ao acaso, rumámos a Mondim porque a tia estava a morrer.
O casebre estava mais sinistro que sempre, e tia estava deitada com os lençóis até ao peito.
Lembro-me de ver o meu avô a pegar-lhe na mão e a acariciar-lhe os silêncios.
Chovia…
A “brava” ali deitada, suspirava em fim, com o gémeo ao seu lado…
Caiu a noite.
O que os dois pensaram naquele momento em expectativa, é pura especulação…
Na cara do velho, uma tristeza recortada por recordações de afecto.
Dos tempos em que corriam aos cabeços e rebolavam encantados com a inocência do mundo, da Clara sempre em mímica a repetir os gestos do irmão num espelho sem voz.
A Clara sempre de preto na charanga dos ciganos a surpreender os seus olhos, de cores e gente estranha.
A subir ás árvores como um homem e por lá entardecer nos eclipses da existência.
O primeiro dia escola, com o meu avô a chorar e a Clara horas em pé sem arredar um milímetro á espera do irmão com o chibo pela corda.
O que tenho de Mondim, são memórias incompletas dos verões que ali passei.
Memória de caminhos percorridos pelos montes fora, a vinte metros da minha tia que agora estava deitada, como nunca a vira antes.
Constava que dormia de olhos abertos para espantar terrores nocturnos.
Aparecia-me sempre em susto com uma fruta na mão, serena como fato fúnebre e lívida como uma aparição.
Não tinha medo, mas herdava-lhe a mudez nos encontros a sós.
A noite continuava nos olhos do meu avô.
A garganta era um nó que se desfazia em afago num calar de adeus eterno.
Quando chegou a madrugada nova e republicana, quando as videiras adormeceram e os paus giraram no ar, as janelas entristeceram e as beatas se ajoelharam…
Aconteceu o que era lágrima no rosto do meu avô…
Quando na ultima jornada, em visões que só em Mondim, lhe saiu da boca toda a palavra de uma vida…
Quando tudo o que em amor partia agora na existência de uma “brava” de voz apagada …
Surpreendam-se as beatas inocentadas nas hóstias, até o padre apavorado lhe esqueceu a extrema-unção, quando dos confins da vida em fim, olhou o meu avô e o exclamou para sempre!
-Manel!
-Clarinha…minha linda…Clarinha…
Choraram as tempestades, as janelas vestiram luto…
Morreu a tia Clara e com ela…
O tempo dos reis.
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