JOEL MATOS
JOEL MATOS
por
Jorge Santos
Capítulo 1
Conhecemo-nos numa certa tarde de outono, no caminho do Liceu de Oeiras/Paço de Arcos, chamava-se Sebastião “Silva e mais qualquer-coisa”, perto de Lisboa ou seja entre Cascais e Lisboa, sou muito mau a fixar nomes de sítios, pessoas e coisas; creio que foi numa área de residências de luxo muito antigas, típicas casas senhoriais do antigo regime, pintadas de amarelo e branco; lembro-me que não era muito longe do quartel militar onde Joel Matos, como mais tarde vim a saber o nome; disse que cumpria serviço militar, nessa altura de 1982, em outubro, era um dia já tardio, igual a outro dia qualquer, realizávamos a pé, desde Paço de Arcos a Oeiras, o mesmo trajeto, já nos tínhamos avistado noutras alturas mas nunca tínhamos começado conversa; aparentou-se-me despretensioso e tímido, vestia farda verde seco demasiado larga e ainda maiores as botas, davam um ar cómico de pinguim andante ou Charlie Chaplin sem bengala nem bigode, a boina mal ajeitada e o sentimento de haver sido deslocado no espaço e no tempo que quase todos os soldados do serviço militar obrigatório aparentavam por mais que o tentassem esconder quando perseguiam com olhar e mãos, as raparigas da terra, fartas de soldadinhos imberbes mas atrevidos dentro das cómicas fatiotas esverdeadas, vazias.
Lembro-me particularmente desse ano por uma situação singular, foi aquando da visita do Papa que nessa época era João Paulo II a 12 de maio no Santuário de Fátima, dia em que foi vítima de tentativa de atentado por membro de uma outra religião; saiu ileso dizia-se na altura – por milagre “divino”. O papa perdoou-o em visita à prisão onde se encontrava detido, poucos dias depois do inconveniente episódio.
Assemelhou-se a algo assim estranho também aquele encontro, mas prefiro usar a palavra invulgar como adjetivo para uma ligação que ainda dura mais de vinte anos depois e para alguém tão pouco comum tal como o Joel Matos, surreal até.
Germinámos parceiros e parecidos no mesmo ano de 1961, temos a mesma idade, embora Joel tenha surgido em mês e dia par e eu em impares ambas as datas, dia e mês.
Nessa noite as aulas passaram tão rapidamente que nem dei por terem acabado, tão determinado estava em desenhar o mistério deste personagem que parecia conhecer irmãmente ou assim como a mim próprio, mas que, por algum motivo de desassemelhava em tantos e importantes aspetos comigo.
Era sombria a áurea que nos rodeava, quase esquisita, e o Joe, pensativo dava aquela aparência de quem não quer receber visitas fosse a que horas fosse, de dia ou de noite. Falámos sem trocar palavras e entendíamo-nos como os mudos se entendem, sem dizer palavra, diminuindo as sílabas vocais.
Corrosivo e caustico, acabava sempre por pedir desculpa apesar de conscientemente sentir que usufruía como certas as opiniões que tinha além das oportunidades mais honestas deste mundo.
Os dias passaram e nós dois também passámos mais ou menos discretamente de afeiçoados um ao outro a confidentes íntimos, inseparáveis até ao osso e à medula óssea.
Eu podia ter parado, sentia que deveria parar este influenciar mutuo, tive a sensação de proximidade com Joel por diversas vezes antes desse dia e ao longo dos anos embora sempre rejeitasse e repelisse semelhante ideia pois a achava sintomática de esquizofrenia ou loucura, mas ali estava ele finalmente; nós frente um ao outro como irmãos apenas separados por hélio e formas diferentes de ler o nosso próprio conteúdo.
Capítulo II
Incomoda-me ainda hoje, decorridos tantos anos, o nome que atribui a si mesmo esta personagem que sempre e esporadicamente me povoou e se desenvolveu em mim, perante mim e se desenrola agora na minha expressão dramática sem ser necessariamente distinto ou distinta, mas seguindo um instinto separado, não paralelo. Incomoda-me a facilidade de argumentos e o “dark soul”, o modo impulsivo explosivo e compulsivo com que raciocina e a compreensibilidade lógica subjacente e independente, par.
Disse-me um dia Joel em nome de um grande homem que admira “Basta existir-se para ser completo” tomando como princípio que existe ele mesmo e ao qual eu respondi olhando-o nos olhos verdes, lembro-me tão bem, sentados na guarita da Arrábida no Sírio de Maio,
“Tod’a fraqueza é possível quanto dura for a pele, tu não és fraco, és puro Joel, nada te coíbe de ser inteiro”
(cont)
Jorge Santos (Namastibet)
Submited by
Ministério da Poesia :
- Login to post comments
- 5664 reads
Add comment
other contents of Joel
Topic | Title | Replies | Views | Last Post | Language | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia/General | Pra lá do crepúsculo | 30 | 2.913 | 03/06/2024 - 11:12 | Portuguese | |
Poesia/General | Por onde passo não há s’trada. | 30 | 3.507 | 02/18/2024 - 20:21 | Portuguese | |
Poesia/General | Sonhei-me sonhando, | 17 | 3.394 | 02/12/2024 - 16:06 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | A alegria que eu tinha | 23 | 3.550 | 12/11/2023 - 20:29 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Notas de um velho nojento | 7 | 2.538 | 12/06/2023 - 21:30 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | (Creio apenas no que sinto) | 17 | 2.005 | 12/02/2023 - 10:12 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Vamos falar de mapas | 15 | 6.582 | 11/30/2023 - 11:20 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | São como nossas as lágrimas | 9 | 668 | 11/28/2023 - 11:11 | Portuguese | |
Poesia/General | Entrego-me a quem eu era, | 28 | 3.056 | 11/28/2023 - 10:47 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | O Homem é um animal “púbico” | 11 | 3.325 | 11/26/2023 - 18:59 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | A essência do uso é o abuso, | 1 | 3.015 | 11/25/2023 - 11:02 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Insha’Allah | 2 | 2.207 | 11/24/2023 - 12:43 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | No meu espírito chove sempre, | 12 | 1.982 | 11/24/2023 - 12:42 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Os destinos mil de mim mesmo. | 21 | 5.195 | 11/24/2023 - 12:42 | Portuguese | |
Poesia/General | “Daqui-a-nada” | 20 | 3.553 | 11/24/2023 - 11:17 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Cada passo que dou | 0 | 1.439 | 11/24/2023 - 09:27 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Quem sou … | 0 | 2.115 | 11/24/2023 - 09:26 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Ricardo Reis | 0 | 592 | 11/24/2023 - 09:24 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | A dança continua | 0 | 2.215 | 11/24/2023 - 09:23 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | A importância de estar … | 0 | 2.061 | 11/24/2023 - 09:17 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Se eu fosse eu | 0 | 1.194 | 11/24/2023 - 09:15 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Má Casta | 0 | 2.229 | 11/24/2023 - 09:14 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Neruda Passáro | 0 | 2.871 | 11/24/2023 - 09:12 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Pouco sei, pouco faço | 0 | 1.535 | 11/24/2023 - 09:11 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Do que tenho dito … | 0 | 1.612 | 11/24/2023 - 09:09 | Portuguese |
Comments
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.