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Até cair
Em 92 o Calò foi preso e o café fechou…
Estávamos em vésperas do concerto dos Jesus&mary chain no Pavilhão Carlos Lopes…lembro-me como se fosse ontem…porque ontem vi o Calò e mantenho o bilhete dele intacto num quadro de corticite, lá em casa.
É uma marca que guardo onde á vezes exorcizo os meus apagões existenciais.
Lembro-me como se fosse ontem...Mão Morta na primeira parte e a bófia a embocar café adentro, enquanto eu a ribombar nos cornos o “Oub'lá”, que jogava comigo ao ataque nos matraquilhos, brotado em pirataria de um leitor de cassetes que servia de bibelô atrás do balcão, desprezava visitas inesperadas e sem bilhete para o espectáculo.
Estava de tal modo concentrado no jogo que só me apercebi da rusga já no chão…
Da malta que parava no café do Calò, os que não morreram foram presos… e os que escaparam quase por artes mágicas ao delírio concentrado em substâncias de importação duvidosa em vouga nos anos 80, ficaram por cá a guardar memórias e bilhetes de concertos em placard’s de corticite.
O Calò está feito um homenzinho, ao que vejo e ao que consta nos sorrisos acabrunhados das vizinhas venenosas que lhe deram a cana á 17 anos atrás.
-Boa tarde…e o Calò cínico como uma mula coxa a exibir o puto quase em cartaz de concerto sorri qual sacristão devoto que acabou de gamar as esmolas da igreja…
-Olá vizinha, tudo bem lá em casa, o senhor Alípio está bonzinho…
Vaca!!!
Estava eu com a focinheira encostada ao soalho, onde a visão só me permitia conferir do mau estado das solas do pessoal em revista, quando a autoridade, o senhor agente, o xerife, me mandou arvorar em estátua para me inspeccionar cuidadosamente com uns estalos de prevenção, na ânsia de encontrar algum campo de papoilas afegãs nos bolsos das calças rotas.
O Calò, que antes da febre da selecção, antecedeu o Scolari em matéria de dar bandeira, ficou depois encostado comigo á parede enquanto a mona vasculhava canto por canto o que haveria de encontrar…
-Tou fodido…tens o meu bilhete não tens?
Um gajo mesmo á beirinha de ir de saco, á conta dos sacos que vendia para complementar a quebra dos cafés e a perguntar-me se tinha o bilhete para os Jesus…
-Tenho Calò…está na carteira…
-A primeira parte é Mão Morta???
Eu já a entoar para dentro o “desmaia irmã desmaia” e a responder…
-È pá…tem calma…
-Tou fodido…
Olho para o lado e gajo treme como uma gelatina e está a chorar de mãos mortas na parede…
-Fodasse calò…fodasse!!!!
Estávamos em vésperas do concerto dos Jesus&mary chain no Pavilhão Carlos Lopes…lembro-me como se fosse ontem…
Um ribombar dos acordes dos irmãos Reid, nos meus cornos cheios de raiva…”Psycocandy”, o “Happy When it Rains” e o “On the Wall”, connosco encostados á parede do café a despedirmo-nos entre gritos de bófias coléricos por só levarem um em cana…
Guarda-me o bilhete!!!
Eu a entrar no Carlos Lopes com a namorada e saltar á biqueirada com os Mão Morta a espetar-me “Facas em Sangue”, o Calò já a ver a lua em quadriculado na primeira noite dos sete anos de pildra e eu de repente sentado no antigo pavilhão dos desportos com ele ao meu lado na carteira na escola secundária, eu a gritar para o palco…- “Destilo Ódio”… e o Adolfo que por acaso até é meu homónimo a afinar o “Anarquista Duval”, puta que o pariu…e eu a saltar a beber as cervejas todas que nunca mais bebi no café do Calò, que fizesse a merda que fizesse era meu amigo, que lhe comprava bilhetes para os concertos, que não era o “Charles Mason”, que o Luxúria e companhia diziam em cima do palco…
Depois chorei, ou acho que chorei…por mais de sete anos, por mais de uma década, por mais de uma cura, por mais de uns tempos de ócio a inventar misérias e mortos no café do Calò, nos bancos do jardim, na estação da Damaia, nos passos perdidos, onde encontrava demasias de mim em quadros de corticite no antigo Casal Ventoso…a prisão, de quem nunca foi preso, de quem tinha a ribombar os “Ventos Animais” nos escombros tempestuosos da alma…
Acalmei…hoje, ao ver-me ao espelho, a ver o Calò e o puto em cartaz, a não ver os Hugos, os Gerardos, os Victores a minha irmã e tantos outros que que não tiveram a “sorte” de ir presos…
Tenho o olhar detido em pontos tão fulgentes que me embriagam hipnótico a redimensionar passados.
Tenho tudo cá dentro excepto o que não lembro…ou o que partiu.
Ainda agora, especado nas três e meia da madrugada em fuga, comprovo o delírio realçado pelo vinho, destas ruas amansadas pela memória que me resta…
O som desta cidade a horas altas noite, são garrafas a partir, sirenes em tom desértico e energias que vagueiam amarrotadas de cansaço.
Já ouviram o silêncio ribombar?
Assim me quedo…em silêncios que acendem cigarros ininterruptos…
Andei por aí.
Ruas e emoções divorciadas da minha vida que me sabem os adeus e me ensinam a saudade…
Ainda oiço os Jesus…e ao longe dos anos que foram, ainda me lembrei dos Mão Morta…”Até Cair”…e o Luxúria numa melopeia em encore a revisitar-me com o “E se depois”…
Se depois deste tempo que insistiu mas passou, se depois do concerto mais longo das nossas vidas, eu esquecesse o que foi…teria para sempre esquecido quem sou.
Em 92 o Calò foi preso e o café fechou…
Estávamos em vésperas do concerto dos Jesus&mary chain no Pavilhão Carlos Lopes…lembro-me como se fosse ontem…porque ontem vi o Calò…
-Tens o meu bilhete?
Está num quadro de corticite lá em casa… é uma marca que guardo…
“Até Cair”!!!
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Comentários
Re: Até cair
Assim vale a pena ler!
Até cair!
:-) :-)
Re: Até cair
Parabéns pelo belo poema.
Gostei.
Um abraço,
Roberto