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De que carne somos feitos

O Carlinhos sempre foi um gajo esquisito!
Desde a sua inclinação para na rapina assegurar um trato maternal ás bonecas da irmã, até ás súbitas fugas em meias horas livres, para se adornar de batons e pó de arroz que á socapa surripiava à mala da mãe.
No entanto, dos tantos anos em que conheci o Carlinhos, sempre o tive como uma “irmã” mais velha, amaricado, gordo, com uma voz de Callas em esganiço, mas muito certo do que era a lealdade dos homens.
O Carlinhos, que animava autocarros inteiros quando desfilava quase em plumas a desenhar risinhos sátiros na boca de penugentos agarrados á puberdade, era uma flor com espinhos, para quem quer que ousasse “podar” o seu corpo, com mãos Neandertais de “jardineiro” homofóbico ameninado.
Resumindo: O Carlinhos era uma bicha muito homem.
Encontrava para os passeios lectivos uma alma gémea que o acompanhava, nas suas deambulações travestidas pelo liceu… rapaz, rapariga, ou a mistura dos dois.
Num destes meses quentes, tínhamos por hábito e escassez de fundos, frequentar em bando a piscina da Reboleira, que se fazia em conta certa para por os pés ao caminho e esbanjar quarenta escudos á entrada, pagas em duas de vinte, choradas entre a promessa de boas notas que não eram “vintes”, aos nossos pais coléricos, com tamanha falta de carácter depois de um ano a “bronzear” na escola.
A piscina da Reboleira foi provavelmente o lugar onde perdi pela primeira vez o complexo étnico de “esbranquiçado” provinciano e subúrbico, tal era a concentração de brancos e pretos portadores de quarenta paus e más notas que nos metia a todos no mesmo barco, ou seja na mesma piscina!
O Carlinhos era aquele cromo que marcava presença íntegra no grupo de malta que invadia a Reboleira na época balnear e que toda a maralha conhecia.
Pecava pelo seu verbo exclamado e varino que apregoava olhares em brado ás pernas dos gajos pretos ou brancos que entre saltos da prancha, crawl´s e mariposas encenavam performances, para chamar a atenção de todas as gajas, que não fossem o Carlinhos!
Uma coisa era certa…não houvesse fundos para a piscina e o Carlinhos que era um ano e meio mais velho que eu, dispunha-se com a sua pose a angariar uma colecta para adquirir a entrada de quem quer que fosse.
Arranjava trocos quase sempre, o que me deixava a mim e aos demais boquiabertos com tamanha astúcia.
Assim como eu, os pretos e os brancos, o Carlinhos não era o que se podia classificar como um pródigo na arte do estudo, optando por desenhar obras de gosto duvidoso, nas sebentas quase em branco que comprávamos na papelaria da escola.
Este desinteresse era brindado a cinto pela autoridade castradora do cabo Martins, que era á altura um efectivo da GNR e pai do Carlos durante as folgas.
A memória é por vezes um frigorífico, que congela e descongela a seu bel-prazer pretéritos menos perfeitos acoitados nos recônditos onde se cristaliza a alma…e as lembranças do passado.
Numa das nossas idas á piscina da Reboleira, onde nos subsidiamos, sem o aval de deus na caixa de esmolas da nossa velha paróquia, obra levada a cabo por mim e pelo Carlinhos, sem a graça do senhor, cruzamo-nos á saída com a guardiã do templo, a beata Fernadinha, num encontro imediato, onde esta pela providencia divina só digitalizou entre-lentes o Carlinhos como actor do atentado à obra da igreja, ficando eu na sombra incógnita.
Aquilo deu para o autocarro, para gelados e "Colas" frescas entremeadas com nougat’s e ingressos para a piscina que haveriam de dar para o torto…duas vezes!
Dos sete e quinhentos que eu destinei para um maço de Kentucky, chegados á Reboleira comecei a levar um “banho”, ainda á porta da piscina por parte de três freak’s que queriam dar umas passas e uma malhas no meu coiro franzino que estava destinado a conjugar o verbo “encher” e a aprender a cantar sem dentes.
Quando estava prestes a alinhar, o Carlinhos que tinha ido ao quiosque buscar umas pastilhas, aproximou-se em plumas a perceber o meu enrasco e como uma irmã mais velha, numa expressão que para mim teve origem na sua boca atirou:
-Olha os “freak’s da passa e “frakos” da piça a quererem nadar na calçada!!!”
Alçou-se um burburinho no ar…ele era pretos era brancos eu a ficar azul e roxo e o Carlinhos num agrafo explosivo a dar na tromba a dois a galifões fumadores que o tinham como bichano e agora o tinham como pugilista…e dos a sério!
Deu direito a palmas e a uns lugares na fila para a “bicha” da piscina.
A segunda parte do drama deu-se ao chegarmos a casa, quando à saída do autocarro, tínhamos à perna o Jipe da GNR, com a beata Fernandinha e o cabo Martins a dar lustre ao cinto.
O quem foi e o quem era num reboliço de perguntas orientadas á estalada caíram indiscriminadamente no coiro do Carlinhos, o único identificado pelo “sacrilégio das esmolas”, pelo pecado mortal do roubo, ficando eu no remorso no banco da paragem a alinhavar contradições entre a sorte que eu tivera e o azar que estava a ter o Carlinhos, todo negro como os gajos da Reboleira, mas sem nunca tocar no meu nome.
Mas a memória é por vezes um frigorífico, que congela e descongela a seu bel-prazer pretéritos menos perfeitos acoitados nos recônditos onde se cristaliza a alma…e as lembranças do passado.
Estive por circunstancias da vida uns anos afastado do Carlinhos, que não acabou o liceu, que não casou com um homem, que não perdeu o hábito de se interessar por eles, que casou com uma gaja para não envergonhar o cabo Martins, que se separou ao fim de um ano, que trabalhou no Bairro Alto, que frequentava o “Finalmente” onde tratava todos por tu, que foi promíscuo q.b para chegar a ser feliz.
Hoje quando o fui visitar ao Curry-Cabral, cumprimentei o cabo Martins, que é pai na reforma, a mãe que já não põe maquilhagem e a irmã Mafalda que é doutora não sei do quê.
O Carlinhos que resta foi um sorriso enorme de quem está de bem com a vida, que lhe foge em anemias e num rosto descaído onde antes se erguiam duas enormes bochechas.
Demos um abraço e o gajo cravou-me logo um cigarro, ao que acedi infantilmente sem sequer o repreender.
Falámos de gajos, de gajas, daquele casamento onde quase fui padrinho safo por uma ressaca seguida de caganeira á conta da despedida de solteiro, falámos e silenciamos anos encadeados por um raio de sol que embalava a enfermaria numa festa de palavras que se encontravam a lembrar.
O Carlinhos escorria água como se tivesse acabado de sair da piscina da Reboleira.
Mas rimos…rimos bastante!
-A doença está a comer-me as defesas…
-Antes as defesas que os pontas de lança…retorqui a gracejar!
-Antes me comesse o cú!!!
-Fodasse…
Sorri eu com voz grossa.
O raio de sol ia-se desvanecendo sobre a cama.
-Pá tenho de ir…está a acabar a visita e os teus pais ainda querem vir cá dentro…
Demos um abraço…um longo abraço!
No meio deste arquejo onde a memória é por vezes um frigorífico, que congela e descongela a seu bel-prazer pretéritos menos perfeitos acoitados nos recônditos onde se cristaliza a alma…e as lembranças do passado, o Carlinhos, o Homem, segredou-me ao ouvido a escorrer água da piscina: Puto… lembras-te daquela tarde na Reboleira?... Em grande pá…em grande
-Eu sei Carlos…eu sei.
E sai para o Agosto a compor nós na garganta e concluir para sempre o que sempre tinha sido, em pretéritos menos perfeitos que fazem um homem inteiro…
O Carlinhos era uma bicha muito homem, muito certo do que era a lealdade dos homens… e do abraço dos amigos.
Parecia-me tudo…menos esquisito.

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sexta-feira, fevereiro 19, 2010 - 01:10

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Lapis-Lazuli

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