CONCURSOS:

Edite o seu Livro! A corpos editora edita todos os géneros literários. Clique aqui.
Quer editar o seu livro de Poesia?  Clique aqui.
Procuram-se modelos para as nossas capas! Clique aqui.
Procuram-se atores e atrizes! Clique aqui.

 

A carga da brigada ligeira

    Queixo bem erguido no ar, olhos matreiros a percorrer a sala do restaurante, e um
sorriso de vitória estampado nos lábios. Um sorriso que é natural quando temos cinco
ou seis anos e conseguimos fazer com que alguém nos corte a carne. A do bife da vaca,
bem entendido.
    Baixas os olhos desta cena idílica, e deixas o teu pai terminar a tarefa a que se impôs.
Afinal és um pouco mais velho que o teu irmão e do teu prato tomarás tu conta. Espetas
o garfo no ovo estrelado e a gema escorre pela clara, tentas acudir e fazer um dique com
um pedaço de pão, mas não vais a tempo. Já gostavas de ser mais hábil. A gema, que
parece nunca mais acabar, espalha-se pela carne e, vê bem, até pelas batatas fritas.
Uma catástrofe de proporções inimagináveis. És um desajeitado, está decidido e sem
recurso possível. Derradeira instância aos nove anos? Francamente, eu sei que pensas
que consegues vender a tua própria mãe e, ainda oferecer a tua sogra como uma irresistível
promoção dois em um, mas não te safas com essa de impingires ás pessoas que aos nove,
noves fora, zero.
  " Zézinho, tenho que falar contigo."
  Sentes algum alivio por poderes retirar a atenção do cenário de guerra em que o prato
se transformara e encarar o teu pai.
  "Sim, diga."
  "Sabes, vou ter que fazer uma viagem, ficaremos algum tempo sem nos vermos"
  Ficas calado. Olhas para ele sem perceber que raio é que ele quer dizer com aquilo.
Há alguns meses que só o vêem ao fim de semana. Porque é que o homem, se quer
viajar, não viaja à segunda e vem à sexta, assim não afecta o vosso sábado em conjunto.
Ele retira um cigarro do maço e acende-o. Ainda bem que hoje já não é possível fumar
em tascas. O teu irmão continua a comer os pedacinhos de bife que o papá lhe cortou,
continua muito satisfeito consigo próprio.
  " Zé, percebeste o que te disse?"
  Insiste ele. Não respondes e perguntas:
  " Quanto tempo vai durar a sua viagem ?"
  "Não sei."
   Impossível, pensas, como não sabe, então vai viajar e não sabe por quanto tempo.  
  " Quantas semanas, pai?"
  " Não te sei responder." Desvia o olhar, fixa-o num ponto qualquer distante.
  " Acha que irão ser meses?"
  " Provavelmente."
  " Meses? Serão meses, pai?"
  " Sim, serão meses. Quero que te portes muito bem com a tua mãe."
  " A mãe já sabe? A mãe já sabe e não nos disse nada?"
  " Não, a tua mãe ainda não sabe, ainda não lhe disse. Podes ser tu a fazê-lo quando
eu vos deixar em casa."
  " Pai, não quero mais." Diz o teu irmão. O pai olha para ele e depois para o prato.
  " Mais um pouco. Ainda aí tens muito e já cortado" Não presta mais atenção e
volta-se de novo para ti. Tentas que não haja alteração no tom em que falas.
  " E vai para onde?"
  " Não te posso dizer:"
  " Para Lisboa? Para o Porto? Para onde pai? Como é que vou explicar à mãe que
o senhor vai viajar por tanto tempo e não pode dizer para onde. Não o pode fazer
porquê?"
  " Vou para o estrangeiro."
  " França? Inglaterra? Para onde? E vai porquê? Em trabalho?"
  " Sim filho, em trabalho. A empresa precisa de mim no estrangeiro."
  Vais continuar e insistir durante todo o jantar, mas não consegues saber mais.
Depois das sobremesas comidas, ele leva-vos a casa e, mal tens oportunidade,
falas com a tua mãe.
  " Não sei."
  Não sei, não sei, não sei, não sei. Mãe e pai não sei, filhos não sei, todos não sei,
sempre não sei, não queres saber e tens horror a quem saiba.
  Mas hoje há três coisas que tu sabes, sabes que nunca mais o viste ou ouviste,
sabes que morreu há alguns anos, não muitos, e sabes que se fechares os olhos e
pensares nele consegues reproduzir o cheiro que ele tinha então. E isso, acredita,
tu sabes e salvar-te-á a vida.

Publicado originalmente:
Isto de se ser humano
http://istodeseserhumano.blogspot.com

Submited by

sexta-feira, julho 13, 2012 - 14:54

Prosas :

No votes yet

José Sousa

imagem de José Sousa
Offline
Título: Membro
Última vez online: há 11 anos 41 semanas
Membro desde: 11/17/2011
Conteúdos:
Pontos: 57

Comentários

imagem de Jokalink

Ainda bem!

Ainda bem que proibiam fumar em recintos fechados...

Muito bom!

Abraço.
Jorge

imagem de José Sousa

Tabagismo

Olá Jorge, bom dia.
Completamente de acordo consigo. As crianças, e não só, por certo agradecerão.
Forte abraço e bom domingo.

Add comment

Se logue para poder enviar comentários

other contents of José Sousa

Tópico Título Respostas Views Last Postícone de ordenação Língua
Prosas/Pensamentos Flores e punhais 0 1.003 07/31/2012 - 22:27 Português
Prosas/Contos A carga da brigada ligeira 2 1.291 07/15/2012 - 11:51 Português
Prosas/Comédia A víbora 8 1.172 07/14/2012 - 19:24 Português
Prosas/Pensamentos Um pouco de pele 0 806 04/10/2012 - 17:52 Português
Prosas/Contos A caverna dos leões 0 1.030 03/08/2012 - 11:59 Português
Prosas/Drama O bolo 0 1.137 01/13/2012 - 19:41 Português
Prosas/Contos Sal 0 910 01/07/2012 - 12:07 Português
Prosas/Comédia A inquisição espanhola 2 1.005 01/04/2012 - 20:55 Português
Prosas/Pensamentos Aqui onde tu estás 2 1.367 12/30/2011 - 11:30 Português
Prosas/Pensamentos Resistência e rasgo 2 1.983 12/29/2011 - 00:08 Português
Prosas/Romance Lar, doce lar 0 1.417 12/25/2011 - 18:15 Português
Prosas/Lembranças A terra de ninguém 1 1.465 11/27/2011 - 19:36 Português
Prosas/Contos O outro lado da rua é um lugar distante 0 1.185 11/17/2011 - 21:48 Português