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A carga da brigada ligeira
Queixo bem erguido no ar, olhos matreiros a percorrer a sala do restaurante, e um
sorriso de vitória estampado nos lábios. Um sorriso que é natural quando temos cinco
ou seis anos e conseguimos fazer com que alguém nos corte a carne. A do bife da vaca,
bem entendido.
Baixas os olhos desta cena idílica, e deixas o teu pai terminar a tarefa a que se impôs.
Afinal és um pouco mais velho que o teu irmão e do teu prato tomarás tu conta. Espetas
o garfo no ovo estrelado e a gema escorre pela clara, tentas acudir e fazer um dique com
um pedaço de pão, mas não vais a tempo. Já gostavas de ser mais hábil. A gema, que
parece nunca mais acabar, espalha-se pela carne e, vê bem, até pelas batatas fritas.
Uma catástrofe de proporções inimagináveis. És um desajeitado, está decidido e sem
recurso possível. Derradeira instância aos nove anos? Francamente, eu sei que pensas
que consegues vender a tua própria mãe e, ainda oferecer a tua sogra como uma irresistível
promoção dois em um, mas não te safas com essa de impingires ás pessoas que aos nove,
noves fora, zero.
" Zézinho, tenho que falar contigo."
Sentes algum alivio por poderes retirar a atenção do cenário de guerra em que o prato
se transformara e encarar o teu pai.
"Sim, diga."
"Sabes, vou ter que fazer uma viagem, ficaremos algum tempo sem nos vermos"
Ficas calado. Olhas para ele sem perceber que raio é que ele quer dizer com aquilo.
Há alguns meses que só o vêem ao fim de semana. Porque é que o homem, se quer
viajar, não viaja à segunda e vem à sexta, assim não afecta o vosso sábado em conjunto.
Ele retira um cigarro do maço e acende-o. Ainda bem que hoje já não é possível fumar
em tascas. O teu irmão continua a comer os pedacinhos de bife que o papá lhe cortou,
continua muito satisfeito consigo próprio.
" Zé, percebeste o que te disse?"
Insiste ele. Não respondes e perguntas:
" Quanto tempo vai durar a sua viagem ?"
"Não sei."
Impossível, pensas, como não sabe, então vai viajar e não sabe por quanto tempo.
" Quantas semanas, pai?"
" Não te sei responder." Desvia o olhar, fixa-o num ponto qualquer distante.
" Acha que irão ser meses?"
" Provavelmente."
" Meses? Serão meses, pai?"
" Sim, serão meses. Quero que te portes muito bem com a tua mãe."
" A mãe já sabe? A mãe já sabe e não nos disse nada?"
" Não, a tua mãe ainda não sabe, ainda não lhe disse. Podes ser tu a fazê-lo quando
eu vos deixar em casa."
" Pai, não quero mais." Diz o teu irmão. O pai olha para ele e depois para o prato.
" Mais um pouco. Ainda aí tens muito e já cortado" Não presta mais atenção e
volta-se de novo para ti. Tentas que não haja alteração no tom em que falas.
" E vai para onde?"
" Não te posso dizer:"
" Para Lisboa? Para o Porto? Para onde pai? Como é que vou explicar à mãe que
o senhor vai viajar por tanto tempo e não pode dizer para onde. Não o pode fazer
porquê?"
" Vou para o estrangeiro."
" França? Inglaterra? Para onde? E vai porquê? Em trabalho?"
" Sim filho, em trabalho. A empresa precisa de mim no estrangeiro."
Vais continuar e insistir durante todo o jantar, mas não consegues saber mais.
Depois das sobremesas comidas, ele leva-vos a casa e, mal tens oportunidade,
falas com a tua mãe.
" Não sei."
Não sei, não sei, não sei, não sei. Mãe e pai não sei, filhos não sei, todos não sei,
sempre não sei, não queres saber e tens horror a quem saiba.
Mas hoje há três coisas que tu sabes, sabes que nunca mais o viste ou ouviste,
sabes que morreu há alguns anos, não muitos, e sabes que se fechares os olhos e
pensares nele consegues reproduzir o cheiro que ele tinha então. E isso, acredita,
tu sabes e salvar-te-á a vida.
Publicado originalmente:
Isto de se ser humano
http://istodeseserhumano.blogspot.com
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Comentários
Ainda bem!
Ainda bem que proibiam fumar em recintos fechados...
Muito bom!
Abraço.
Jorge
Tabagismo
Olá Jorge, bom dia.
Completamente de acordo consigo. As crianças, e não só, por certo agradecerão.
Forte abraço e bom domingo.