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Sal

  América do norte, algures nos anos oitenta.

  Há alguns meses que não falas a tua língua; já nem lês ou sequer pensas na tua língua.

Até a porcaria dos recadinhos que levas sempre contigo são noutras falas que não a materna.

Do alto de toda a sabedoria dos teus dezasseis ou dezassete anos um orgulho imenso te

contempla: vencedor das pirâmides egípcias, conquistador do universo, ainda antes de, na tua

própria aldeia, poderes conduzir qualquer coisa que não seja uma bicicleta à volta do adro ou,

no máximo, uma velha motorizada emprestada e só até à mercearia, não fosse o senhor polícia

apanhar-te. A avenida que os teus passos agora percorrem é apertada demais para o elevado

grau de inchamento que apresentas, até te acontece encolheres-te para progredires sem chocar

com o caudal de pessoas em sentido contrário. Na tua aldeia, escusado seria dizer, caudal só

havia o das marés que impediam o riacho de desaguar convenientemente as lágrimas da tua

família no mar.

" Vai com Deus, filho, vai com Deus."

  Olhas para ela e, para não ficares de alma nua, apertas nas mãos as velhas ceroulas que ias

arrumar na mala.

" Tenho de o fazer, mãe; não torne as coisas mais difíceis. Esta é uma oportunidade única.

Consegui a bolsa e tudo está tratado. Sabe bem que nem dinheiro temos para a faculdade

em Coimbra ou em Lisboa. Prometo-lhe ter juízo.".

" Sim, Zé, eu sei. Vai com Deus."

E, no frio da madrugada seguinte, vais-te. Desapareces desejando ardentemente que deus não

vá contigo porque sabes que ele será muito mais necessário nas tuas costas.

Na avenida, paras e levas um encontrão. De uma janela aberta que não consegues identificar,

que não queres apontar, saem os acordes de uma antiga melodia da tua aldeia: "Barco Negro".    

Tu e o outro tipo trocam desculpas numa linguagem que, enquanto ouves em fundo versos

cantados em português, te parece agora estranha e distante. Sais do meio do passeio e procuras

apoio junto a um prédio para não levares mais tareia. Ali ficas, de olhos fechados até ao fim da

canção e, quando os abres, mesmo à frente dos teus pés, lá estão elas, no chão. Vais apanhá-las,

apertá-las bem nas tuas mãos, guardá-las no bolso do casaco e recomeças o teu caminho.

     Algures na costa portuguesa, 2011.

Gosto quando te aproximas assim, te colas às minhas costas, pões braços à volta do meu peito

e pousas a cara suavemente no meu ombro. Para um homem como eu, que já bateu com a

cara em tudo o que havia para bater, é um autêntico milagre. Uma dádiva que nunca te saberei

agradecer. O mar de inverno pode estar ali, à minha frente, furioso, a desgastar as rochas, o vento

pode assobiar e trazer água salgada até aos meus lábios que só o sentirei nos teus cabelos a

proteger-me a cara. Olho para a ponta do promontório onde está a velha fortaleza de defesa

deste pedaço de costa contra os ataques dos piratas berberes.

    "Sabes, foste tu que a transformaste no que hoje é."

   O teu sorriso sobrepõe-se ao mar e ao vento.

    "Tens-te em grande conta: com que então um farol."

   Rio com prazer, dou-te um beijo na face e encosto a minha cabeça à tua.

   "Os miúdos estão no carro?"

   "Sim, preferiram ficar a ouvir música."

   "Não os censuro, isto está um pouco desagradável. Vamos ter com eles."

   Percorremos abraçados o caminho até ao carro. Quando nos separamos dou-te mais

um beijo, com sabor a sal, e sento-me ao volante. " Barco Negro" na rádio, versão século XXI,

feita por uns fedelhos audaciosos e a quem não falta descaramento. Não tenho a certeza, mas

julgo que se chamam "Amor Electro".

   No espelho encontro os olhos sorridentes do meu filho.

   " É bué fixe, esta música, não é pai?"

   Apesar do sorriso que lhe ofereço de resposta, ele corrige:

   " É bela, esta música, não é pai?"

   " Sim, filho, é bué fixe."

   Olho para ti e sorrimos. Já não há respeito pelos mais velhos.

 

http://istodeseserhumano.blogspot.com

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sábado, janeiro 7, 2012 - 12:07

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