Na nova barca bela em terras de além-mar

pintura de Salvador Dali

vai partir a barca bela destes laranjais em flor
esponsais no brejo da alba, breves beijos, tentações
sereias olhos que espreitam a barca bela passar

erva doce, erva-cidreira sob os seus lábios fatais
frescas falas no ginjal, bocas de atormentar
a barca bela que nasce na funda flor do olhar

coutadas despem as mãos, no seu ermo tentilhar
donzela que assim se entrega ao ver a barca passar
ao seu moço marinheiro moreno do alto mar

ah, são partidas de um cais que nunca mais voltará
partidas da barca bela por terras de naufragar
velejam olhos com ela longínquos no seu trilhar

vai partir a barca bela nas tranças azuis do mar
nos laranjais sobra o sol onde o amor não foi demais
fica a donzela a tecer seus secretos enxovais
que o marinheiro tão moço um dia lhe há-de gabar

nove luas magoadas e a barca bela a enfunar
tão magra a esperança de vir, tão cega a fé de esperar
e as tardes parecem preces do corpo amado a voltar

tão breve o tempo que arde, tão longo o gelo que cai
fecha os olhos e a flama desce ao fundo do laranjal
laranjas secretas luzem no peito de amamentar

mornas, marfim e muamba, sedas, coxins e canela
tanta mágoa feita em sal lhe partiu na barca bela
e a donzela sonha lentas as terras de além-mar

pescador da barca bela, quando voltas ao teu porto,
na aventura do mar, há mais traição e mais dor
era melhor teres ficado no laranjal do teu horto
no país de águias reais com a bela e os esponsais

e a donzela sonha lentas as terras de além-mar
e a barca bela partiu e se volta irá ficar?

(Texto inspirado no Romanceiro de Almeida Garrett. Glosa a sina que faz dos portugueses,
cada vez mais, descobridores de outras terras e de outros rumos além-mar).