EPISODIOS TRADUZIDOS VI

Sacrificio aos espiritos infernaes

(Episodio extrahido da «Henriada», de Voltaire, Canto v)

Em quanto féra chusma de rebeldes
Ás portas de Pariz vai conduzindo
O desleal, fanatico mancebo,
Sobre o successo d'arrojada empreza
Os Dezeseis sacrilegos intentam
Dos fados aclarar a escuridade.
Curiosa de Médicis a audacia,
Mysterios de tão lôbrega sciencia
Já outr'hora indagou, já quiz outr'hora
Entranhar-se nas trevas, nos horrores
D'esta arte superior á Natureza,
Quasi sempre chimera, e sempre crime.
Por todos foi seguido o feio exemplo,
E o povo insano, que imitar costuma
Com animo servil dos reis os vicios,
Amador do que é novo, e do que assombra
Em multidão corria aos sacrilegios.
Para o centro de abobada horrorosa
Pelas nocturnas sombras o silencio
Guiára a detestavel assembléa.
Ao pallido clarão de maga tocha
Ara vil sobre um tumulo se erige,
Onde as imagens dos dous reis collocam,
Objectos de seus odios, seus terrores,
De suas maldicções, de seus insultos.
Ali por voz sacrilega se annexa
A nomes infernaes d'um Deus o nome:
Cruas fileiras de aguçadas lanças
Luzem debaixo dos medonhos tectos:
Tingem-se as pontas em sanguineas taças,
Horrida pompa de horrido mysterio !
O ministro do templo é um d'aquelles
Que, odiosos, dispersos, e proscriptos,
Giram, vagueam, cidadãos do mundo,
Levam de mar em mar, de terra em terra
O seu abatimento, a sua affronta,
E de superstições montão damnoso
Têm por todos os climas desparzido.
Uivando os Dezeseis em torno d'elle,
A's impias ceremonias dão principio.
As parricidas mãos no sangue ensopam,
De Valois vão no altar ferir o peito,
E inda com mais terror, com mais insania
A effigie de Bourbon derribam, calcam,
Crendo que a morte, a seu furor ligada,
Vai co'a dextra fatal, e inevitavel
Taes golpes transmittir aos dous monarchas.
O hebreu profanador com turvo aspecto
Une entretanto as preces ás blasphemias:
Os abysmos, os céos, o Eterno invoca,
Invoca esses espiritos impuros,
Do universo invisíveis turbadores,
E o fogo dos infernos, e o raio.
Tal foi o infando, occulto sacrificio
Que fez em Gelboé lá n'outra edade
Aos numes infernaes a pythonissa,
Quando perante um rei feroz, e injusto
Chamou de Samuel a horrivel sombra:
Assim contra Juda de vãos prophetas
Troava em Samaria a impia boca;
Ou tal se ouviu Atéio entre os romanos,
Invocados os deuses, em seu nome
Agourar, maldizer de Crasso as armas.
Aos escuros, aos magicos accentos
Que profere o maligno sacerdote,
Resposta os Dezeseis do Fado esperam;
Cuidam que hão de forçal-o a descobrir-se:
O céo para os punir quiz attendel os.
Eis interrompe as leis da Natureza,
E do fundo da tacita caverna
Eis sáe lugubre som, murmurio triste.
Cem vezes o relampago espantoso
Na densa escuridão se accende, e apaga.
Entre a fulminea luz, de gloria accezo,
Em triumphal carroça Henrique assoma
Ante os olhos do attonito congresso.
Cinge-lhe marcio louro a fronte augusta,
O sceptro venerando a mão lhe adorna.
N'isto o fogo do raio infiamma os ares,
O altar cáe abrazado, a terra o sórve,
E os rebeldes, o hebreu vão assombrados
Seu crime, e seu pavor sumir nas trevas.

Submited by

Sunday, November 1, 2009 - 19:50

Poesia Consagrada :

No votes yet

Bocage

Bocage's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 14 years 19 weeks ago
Joined: 10/12/2008
Posts:
Points: 1162

Add comment

Login to post comments

other contents of Bocage

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia Consagrada/General GLOSAS LV 2 2.905 02/27/2018 - 10:20 Portuguese
Poesia Consagrada/General APÓLOGOS IX 1 3.096 03/24/2011 - 18:43 Portuguese
Fotos/Profile bocage 0 5.772 11/24/2010 - 00:36 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XIII 0 4.716 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XIV 0 7.134 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XV 0 4.175 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XVI 0 5.070 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XVII 0 4.651 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XVIII 0 5.711 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XIX 0 4.301 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XX 0 6.965 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES III 0 5.346 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES IV 0 8.054 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES V 0 4.729 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES VI 0 4.927 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES VII 0 4.923 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES VIII 0 5.201 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES IX 0 4.879 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES X 0 5.642 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XI 0 4.462 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General FASTOS DAS METAMORPHOSES XII 0 5.579 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPISODIOS TRADUZIDOS VIII 0 5.351 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPISODIOS TRADUZIDOS IX 0 3.327 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPISODIOS TRADUZIDOS X 0 3.008 11/19/2010 - 16:56 Portuguese
Poesia Consagrada/General EPISODIOS TRADUZIDOS XI 0 3.773 11/19/2010 - 16:56 Portuguese