Feitiço da Terra

Feitiço da Terra

A Vila de Coca não constava no mapa, lugarejo húmido e circular construído sobre estacarias na beira pantanosa do rio Napo, um afluente vigoroso do Amazonas e local onde um velho autocarro, cheio de galinhas e gente, regressava semanalmente, perante o alvoroço dos Quinchuas e estancava ruidoso em redor de um enorme pau, que servia também de porta-estandarte ao único militar equatoriano destacado naquela última fronteira.
Pressentia-se sempre o início das tempestades quentes que assolavam Coca com frequência, como um pesado pano desciam sobre o palco esfusiante de verde naquele perdido pedaço de mundo ao som de mil tambores e , quando subitamente paravam, restava apenas metros de água barrenta sob barracas velhas como jangadas em oceano aberto.
O baixar das águas era um frenesim de galináceos que corriam como doidos, bicando grandes vermes de todos os feitios na lama que chegava aos joelhos de quem se aventurava na rua.
Aos sons nocturnos não faltavam nenhumas notas musicais, estavam todas lá, e ao mesmo tempo.
Toda a floresta respirava vapor e cheiro a uma humidade constante que dilatava os poros e cansava o corpo.
Dormia-se as sestas em redes suspensas , mas somente até as crianças chegarem da missão católica , já sem a farda estrangeirada imposta pelos padres e chapinharem nus e felizes gritando alto nas águas quentes do rio.
Belén também era um nome estrangeiro,foi dado a uma menina Quinchua que nadava como os peixes , com os Botos brincava todas aquelas tardes encantadas, longos cabelos dourados como as águas do Napo com que se confundia nas noites de grande luar, parecia fazer parte dele.
Sem família, simplesmente apareceu e depressa cativou a simpatia de todos, com gargalhadas alvoraçadas muito semelhantes às vocalizações dos golfinhos que se ouviam por toda a aldeia.
Dizia que era filha de um boto do rio Pastanza e a mãe da aldeia de Belén , daí ter recebido esse nome em sua memória .Talvez pai e mãe voltassem uma noite de luar para a levar , suspirava ela.
As incessantes aguas e as estações desceram muitos rios com a confiança de sempre, Belén tornou-se mais bela e esguia e cada dia mais inseparável do rio e de um Amigo Aymara chamado mayo , jovem que nasceu mudo e vivia num mundo muito próprio, falava com as estrelas , o vento e a floresta, via o horizonte como ninguém mais por ali, tinha olhos verde profundo e a pele cor de terra, Chamavam-lhe feiticeiro e era inseparável do feitiço de Belen como a vida é inseparável da Terra.
Chegaram um dia os engenheiros e as grandes máquinas infernais, diziam que iam trazer o progresso, construíram estradas e barragens, Coca ficou fazendo parte do mapa turístico do Equador, construíram-se hotéis nas grandes árvores, a vila cresceu e esqueceram a sagrada simbiose com a mãe natureza.
Sem aviso numa noite quente de luar Belén desaparece, viram-na ao longe na curva do rio, distanciando-se no luar, cabelos dourados em turvas e turbulentas águas.
Mayo perdeu o verde nos olhos, tornaram-se vagos e cegos, a pele ficou seca, parou a chuva e o rio secou, deixaram-se de ouvir os botos , os caimões na noite e as aves na floresta.
Mayo deixou de falar com o vento e as estrelas, deixou de ver o horizonte verde, agora todos tinham acesso a altas torres de comunicações mas mesmo assim não liam os sinais da Terra, deixaram de compreender o feitiço de mayo.
Mayo deixou-nos a todos, com a tristeza ,os profundos olhos verdes secaram, a linda Belén não mais foi vista,os cabelos dourados, nadando na distancia do rio Napo, ao luar….
Talvez tenha encontrado o pai ,que vivia no Pastanza e a mãe de Belén e ainda nade no que resta do grande Amazonas.
Talvez não, porque Mayo e Belén eram inseparáveis, como o feitiço da Terra e o encantamento das águas…


J.Santos

Submited by

Friday, January 7, 2011 - 16:56

Prosas :

No votes yet

Joel

Joel's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 6 weeks 6 days ago
Joined: 12/20/2009
Posts:
Points: 42009

Add comment

Login to post comments

other contents of Joel

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Ministério da Poesia/General Indigno eu, 92 6.042 10/22/2019 - 14:37 Portuguese
Ministério da Poesia/General Aconteço "por-acontecer" 87 2.603 10/22/2019 - 14:35 Portuguese
Ministério da Poesia/General Hino ao amanhã 99 21.200 10/22/2019 - 14:34 Portuguese
Ministério da Poesia/General Ânsias ...lais de guia... 92 5.708 10/22/2019 - 14:33 Portuguese
Ministério da Poesia/General Doce manifesto da vida 50 4.884 10/22/2019 - 14:32 Portuguese
Ministério da Poesia/General Pra'lém do sonhar comum ... 80 9.140 10/22/2019 - 14:03 Portuguese
Poesia/General Ranho e linho... 79 5.742 10/22/2019 - 14:01 Portuguese
Ministério da Poesia/General Sonhar é cabelo, 58 6.086 10/22/2019 - 14:00 Portuguese
Ministério da Poesia/General Tudo em mim 40 2.973 10/18/2019 - 23:52 Portuguese
Ministério da Poesia/General É hoje o dia… 301 8.706 07/12/2019 - 11:47 Portuguese
Ministério da Poesia/General Sendo eu outro 77 6.147 06/10/2019 - 17:56 Portuguese
Ministério da Poesia/General Meu cabelo é água e pêlo, sonho é sentir vê-lo… 37 4.714 06/10/2019 - 17:03 Portuguese
Ministério da Poesia/General Sou feliz porque não escrevo… 49 3.131 06/10/2019 - 14:28 Portuguese
Poesia/General O triunfo dos relógios ... 167 46.538 06/07/2019 - 19:02 Portuguese
Ministério da Poesia/General O meu préstimo… 250 10.211 06/07/2019 - 18:59 Portuguese
Ministério da Poesia/General (Busco a eternidade-num-saco-vazio) 265 8.587 06/07/2019 - 18:55 Portuguese
Ministério da Poesia/General Pois tudo o que se move é sagrado. 368 8.225 05/23/2019 - 19:40 Portuguese
Ministério da Poesia/General Minha voz não vê … 232 13.018 05/22/2019 - 18:48 Portuguese
Ministério da Poesia/General (Ouçam-me, pra que eu possa…) 123 5.821 05/22/2019 - 14:34 Portuguese
Ministério da Poesia/General Sou um homem complicado… 156 5.530 05/22/2019 - 08:22 Portuguese
Ministério da Poesia/General Aos pássaros acresce o voar 112 5.066 05/22/2019 - 08:18 Portuguese
Ministério da Poesia/General Tão livre quanto prisioneiro… 388 8.930 05/22/2019 - 08:03 Portuguese
Poesia/General Nada tenho pra dizer ... 285 8.440 05/18/2019 - 15:54 Portuguese
Ministério da Poesia/General Tudo isso me dói e odeio… 124 5.095 05/17/2019 - 11:42 Portuguese
Ministério da Poesia/General Governador de mim… 416 9.298 05/16/2019 - 14:46 Portuguese