O Mestre Canoeiro

O Mestre Canoeiro

 Ao sair de sua palafita, debaixo das primeiras luzes da aurora, quando a manhã ainda escolhia com que cores iria pintar o céu, o pescador Alvício quase não pôde acreditar no que viu. Na curva do rio, por detrás da vegetação do mangue, despontava o vulto de uma canoa guiada por um homem de chapéu. O inconfundível jeito de remar que fazia com que a canoa parecesse obedecer a ordens superiores. A silhueta escura recortada contra o brilho da água era de Mestre Sebastião.
 O mestre canoeiro trazia a canoa encomendada por Alvício semanas antes. Remava firmemente em direção à palafita, puxando o remo de um lado, depois de outro.
 Ao avistar o velho se aproximando, Alvício não pôde deixar de raciocinar um pensamento. Estava na hora de juntar uma molecada para aprender aquele ofício. O derradeiro professor não tinha muito tempo de vida.
Mestre Sebastião era o último mestre canoeiro da região. No pequeno povoado de Ponta do Pasto, em Guaraqueçaba, não havia quem não o conhecesse. Morava naquele pedaço do mundo desde sempre. E o tempo se lembrava disso, mandando-lhe a doença, mensageira da idade. Mas Mestre Sebastião não conhecia idade, nunca soube quantos anos tinha. Só lembrava que seu avô havia sido escravo. A morte, para ele, parecia uma fábula, daquelas que sua avó lhe contava quando era pequeno. Não conhecia nem gripe. Por isso, quando a doença resolveu visitar aquele seu corpo velho, pensou que podia mesmo morrer.
 Na vila, há semanas corria a notícia de que Mestre Sebastião não estava bem.
 Alvício e Mestre Sebastião se conheciam de longa data. O pescador sabia que o velho canoeiro andava doente por causa da falta de encomendas. Mestre Sebastião sempre viveu no meio do mangue, fazendo grande esforço sob sol e sob chuva, sempre coberto com o pó e as pequenas farpas da madeira coladas no suor do corpo. Aquilo nunca lhe fizera mal. Mal lhe fazia ficar em casa, sem encomendas de canoas, navegando no tempo vazio. O progresso havia trazido tempos difíceis para o pequeno povoado de Ponta do Pasto.
 A verdade é que Alvício nem estava precisando de outra canoa, mas quando soube da doença do velho amigo resolveu encomendar uma para dar novo alento ao Mestre.
 O velho canoeiro era homem de palavra. Se dizia que entregava a canoa até tal dia, até tal dia a canoa estava entregue. Se dizia que era canoa para mais de vinte anos, bastava o pescador esperar a vida passar para ver o filho e o neto navegando na bicha. Sempre assegurava que suas canoas jamais faziam água. E as canoas de Mestre Sebastião nunca fizeram água.
 Assim, quando recebeu a proposta de Alvício, Mestre Sebastião ficou um pouco receoso. Extrair uma canoa de uma árvore era trabalho verdadeiro, muita briga de músculos e suor. E o velho não estava muito bem de saúde, não podia garantir o serviço de sempre.
 Mas o amigo pescador insistiu, dizendo que não havia pressa nem prazo. Bastava fazer a canoa, no tempo vago. E assim ficou combinado.
 Naquela mesma noite, sozinho em sua choupana, debaixo da luz do candeeiro, enquanto dava pequenos goles em sua cachaça, Mestre Sebastião sorriu sozinho. Pensava no amigo pescador. Alvício era um menino bom.
 Lá na beira do rio, em sua palafita, Alvício pensava no Mestre. Guardava no peito a esperança de que a nova encomenda traria felicidade para o amigo velho. E talvez a felicidade lhe trouxesse um bocado a mais de vida, para o velho beber na beira do rio. Naquela noite, Alvício dormiu mais tarde.
 Todas as manhãs, Mestre Sebastião ia para a mata procurar a árvore-mãe que deveria parir a canoa de Alvício, mais uma filha do Mestre. Mas não era tarefa fácil, árvore como a que o Mestre buscava já não havia muitas.
 Certo dia, num fim de tarde, o Mestre a encontrou. Enorme, de recusar abraço de um homem só. O velho canoeiro marcou o tronco com o facão e guardou o caminho na cabeça. No dia seguinte aqueles verdes lá de cima iriam abraçar o chão.
 Voltou na manhã seguinte. O machado de Mestre Sebastião trabalhou firme. E o sol, que havia acompanhado a batalha entre o ferro e o pau, ainda teve tempo de espiar o barulho daquelas tantas primaveras deitando no solo.
Mestre Sebastião trabalhava diariamente no tronco. Em dias de sol, suava. Em dias de chuva, molhava. Mas as chuvas que havia tomado, com o corpo suado, não lhe fizeram bem. E a doença exigia seu salário. A cada dia Mestre Sebastião morria mais.
 No boteco, alguns pescadores, ao verem a piora do mestre canoeiro, chegavam a apostar que o velho morreria antes de entregar a canoa para Alvício. Eram apostas tristes, pois os pescadores do povoado sabiam que, com a morte de Mestre Sebastião, morreriam também as canoas daquele pedaço do litoral paranaense.
 Quando Alvício soube da piora do Mestre, chegou a oferecer pagamento para que o amigo desistisse do trabalho. Mestre Sebastião ficou ofendido. Nunca havia falhado na entrega de uma canoa. Não seria na última que iria falhar.
Alvício ficou triste, contou que só havia encomendado a canoa para alegrar o amigo velho. Mestre Sebastião o reconfortou, disse que estava mais feliz trabalhando do que esperando a morte em uma cama. Naquele dia, beberam uma cachaça e se abraçaram muito, falando da amizade.
 E dia após dia o Mestre continuou em seu trabalho.
 Até que, finalmente, havia terminado a canoa. Contemplando-a, lembrou-se de um caiçara que certa vez lhe perguntara: “Como é que o sinhô sabia que tinha uma canoa dentro da árvore?”
 Sorriu.
 De repente Mestre Sebastião sentiu uma forte dor no peito. Tombou. Caiu ao lado da canoa. O Mestre não conseguia se levantar. Já era noite. Muito fraco, sem forças, o velho canoeiro dormiu. Sonhou muitas coisas naquela noite. Em um dos sonhos, viu o amigo Alvício chorando ao lado da canoa. Dentro dela, o corpo do Mestre.
 Acordou assustado, ofegante. O corpo estava encharcado de suor. Tinha febre. Viu as estrelas lá no céu e sentiu o gelado do orvalho da mata sob suas costas.
 Por um momento, pensou que fosse deixar a vida ali mesmo. Pensou que não conseguiria levar a canoa para Alvício. Quando Mestre Sebastião pensou naquilo teve vontade de chorar. Mas não chorou. Para ele, choro de homem era o suor. Dizia que o homem recebia o sal do mar pelos olhos e mandava-o embora pelo corpo, enquanto as mulheres recebiam o sal pelo corpo e mandavam-no embora pelos olhos. Naturezas diferentes. Mestre Sebastião guardou as lágrimas e fez um esforço para tentar se reerguer, apoiando-se nos bordos da canoa.
 Conseguiu. Extraindo forças que nem mesmo ele sabia que possuía, puxou a pesada canoa através da mata até chegar à beira do rio.
 Colocou a canoa na água e, como sempre fazia, fechou os olhos, sentindo a doce sensação de deixar seu coração flutuar no berço de sua criação. Havia ficado boa. Seria uma bela canoa, servindo o amigo Alvício por muitos anos.
 Já começava a amanhecer quando Mestre Sebastião começou a remar na direção da palafita do amigo. A aragem do rio acariciava seu respirar.
 Ao despontar na última curva antes da vila, quando avistou o amigo saindo de sua palafita, o Mestre remou mais forte, como se a visão do amigo alimentasse sua alma.
 Mas o esforço fez com que sentisse um cansaço muito grande. Descansou os remos por um momento e respirou fundo, com a cabeça baixa, o queixo colado ao peito.
 E foi naquele momento, quando viu o velho canoeiro cansado, que Alvício raciocinou que deveria juntar uma molecada para aprender o ofício do Mestre.
 A canoa se aproximou da beira do rio e tocou com o fundo na areia, aos pés de Alvício.
 Mas Mestre Sebastião não levantou a cabeça. Mestre Sebastião estava morto. Havia morrido com um pequeno sorriso nos lábios, as rugas dos cantos dos olhos felizes.
 Alvício abraçou o amigo e chorou. Chorou muito. Suas lágrimas pingavam na madeira da canoa.
E foi a única vez que uma canoa feita por Mestre Sebastião fez água.
 

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Monday, May 16, 2011 - 13:18

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