A inquisição espanhola

    O meu filho teria dois, talvez três anos quando sonhei que ele caíra de uma varanda de

umsexto andar. Acordei sobressaltado, com a respiração alterada e banhado em suor.

Levantei-me, fui fumar para me acalmar, beber um copo de leite para me refrescar e

sentar-me na sala o resto da madrugada à espera que o despertador tocasse para ir

trabalhar. Nos dias seguintes, a angústia que sentira naquele violento despertar, repetiu-se

por mais vezes. Não tinha nenhuma dificuldade em reproduzi-la em situações muito bizarras.

" O senhor Sousa não nos está a dar o prazer da sua companhia."

Disseram-me numa reunião. Uma daquelas reuniões de vida ou de morte. Sei que são raras,

muito raras, mas muito de quando em vez, lá aparece uma ou outra.

" Que porra, Zé, onde é que tu andas."

Gritou-me a rodada de copos que segurava os meus conhecidos.

" Não devia ter estacionado ali."

Alguma vez viram um policia condoído? Eu já. Enquanto o bmw se afundava no Tejo e eu

encharcava tudo à minha volta.

   A minha vida corria evidentes riscos. Algo teria de ser feito. Não acreditava que tudo aquilo

fosse uma simples deriva de ter descoberto que o meu adorável rebento não era um anjinho

provido das respectivas asas.

  Telefonei a um amigo que, em alturas como esta, sempre me fora útil. Os amigos deveriam

ser sempre úteis, mas todos sabemos que assim não é; cada um terá as utopias que merece.

Penso que já terão ouvido falar na personagem, afinal é uma figura incontornável da nossa vida

colectiva, sua eminência o cardeal Don Francisco Alborñoz y Giménez, o inquisidor mor de

todas as Espanhas.

  O Paquito chegou a minha casa vergado sob o peso dos instrumentos de tortura que leva

consigo para todo o lado e pediu-me logo para ir à casa de banho. Saiu de lá refeito.

" Tomei a liberdade de usar a banheira para depositar aquela tralha, não imaginas a canseira

que é andar com aquilo de um lado para o outro. Enquanto eu aqui estiver, talvez seja melhor

não tomares banho. Então, em que é que os meus humildes serviços te podem ajudar?"

  Sempre prestável, o Paquito, sempre muito amigo do seu amigo. Se quiserem, um destes

dias apresento-vos, nos dias que correm dá sempre jeito conhecer alguém bem colocado.

  Contei-lhe tudo, não me esqueci de nenhum pormenor, Paquito ou não, ao inquisidor mor de

todas as Espanhas conta-se sempre tudo, não vá o diabo ou o torniquete tecê-las.

  Quero prevenir-vos de uma coisa, quando o Paquito reflecte tem um hábito um pouco

desagradável,eu diria até boçal: põe-se a andar de um lado para o outro como uma fera

enjaulada e, ocasionalmente, coça o baixo ventre. Sou o primeiro a reconhecer que não lhe

fica bem, mas até o doutor Watson teve de aturar o violino do outro.

   " Elementar, meu caro José, absolutamente elementar."

   Tinha o pressentimento que ele ia começar assim. Esta vida tem coisas...

   " Sentes-te culpado por teres uma vida demasiado ocupada e receias não lhe estar a dar a

devida atenção. Por outro lado, como é o teu primeiro filho, alguma insegurança é perfeitamente

aceitável.Quanto ao facto do fedelho ter caído de um sexto andar e tu viveres com a tua adorável

esposa neste rés-do-chão penso que isso terá a ver com aquilo que fizeste na faculdade. O teu

apartamento não era precisamente num sexto andar. Não te preocupes, já passaram alguns anos.

Estás muito melhor agora."

   Não vos posso descrever o imenso alívio que senti. Abracei comovidamente o meu amigo

Paquito, agradeci, desejei a melhor sorte para o conclave de eleição do novo papa que começava

no dia seguinte e acompanhei-o à porta. Tudo está bem quando acaba bem.

  Dei um beijo e um abraço tanto ao miúdo como à minha mulher e entrei na casa de banho.

Porque é que aquele estupor não levou a bagagem.

 

 

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Jueves, Diciembre 22, 2011 - 22:34

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José Sousa

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  Querida Odete. Muito

  Querida Odete. Muito obrigado por mais esta simpática 

intervenção. Irei fazer um esforço acrescido no sentido de lhe 

proporcionar, pelo menos de vez em quando, algo de mais 

original. Em relação a si, já terei a ficha feita e sinto-me muito 

confortável com isso. Que bom! A atenção que me dedica é 

algo que me enternece. Mais uma vez obrigado. Um beijo.

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Pois é...

Poie é...Quando se identificam traços peculiares nos escrito de alguém, começa a ser difícil ser original nos comentários!

Mas juro que vou tentar descobrir algo: polimento na escrita , um tom cerimonioso em algumas partes, usando vocabulário "respeitoso",

não descurando a proximidade com a linguagem mais coloquial, quando o tipo social o exige.

Li atentatente...Claro que estão também presentes as particularidades que já referi noutos comentáriossmiley

Bjo, amigo José

 

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