Um pouco de pele

   Tu e eu, neste preciso instante e em qualquer lugar, com os teus olhos aqui, mesmo aqui,
a percorrerem os meus, e os meus em busca da profundidade dos teus, vamos tentar a única
coisa que vale verdadeiramente a pena fazer: afastar um pouco a morte. A tua e a minha morte.
E tudo o que merece a pena ser feito, merece ser bem feito.
   Não sei se, alguma vez, lemos o mesmo poema ou ouvimos aquela canção; não sei sequer
se, um dia, terei o privilégio de olhar contigo na mesma direcção. A única certeza que julgo ter
agora é esse olhar pousado em mim e basta-me isso para te tentar alcançar.
   Antes de começarmos, devo alertar-te para algo: em caso algum subestimes o teu poder. Este
carrossel até pode estar às voltas há já dois parágrafos mas posso assegurar-te que, assim o
ordenes tu, e ele parará suavemente e poderás sair com toda a tranquilidade. Convém-me que
tenhas esta consciência, porque me recordo que entre a dor e o medo, por vezes escolho a
primeira. Porquê? Porque já vivi momentos em que à sabedoria da indiferença preferi a nada
sensata resolução de enlouquecer agarrado ao estandarte do afecto ou à bandeira da
imaginação. Sabes, todos nascemos loucos mas há uns quantos infelizes que assim permanecem.
   Nunca será demais repeti-lo: em caso algum subestimes o teu poder. Antigamente os animais
falavam, hoje, os tolos escrevem. Pois que viva o progresso.
   Continuas aqui? Óptimo, fico feliz. Penso que chegou o momento que te prometi no inicio. O
instante em que, sabendo nós que nunca a poderemos vencer, tentaremos impor-lhe vida.
   Aqui a tens, agarra-a se quiseres, a minha mão. Ainda antes que te apeteça chamar-me
aldrabão, charlatão ou outra qualquer palavra terminada em ão e que queira dizer mais ou
menos o mesmo, imploro-te que retires esse olhar estupefacto do pouco de pele que te ofereço
e te lembres que, para quem vive, a dor é inevitável mas o sofrimento é o que há de mais absurdo
sobre esta terra. Sonhar e sentir o que nos for possível  e, lá bem no final, quando a lâmina do
sabre se aproximar, digo eu, talvez espernear um pouco.

Publicado originalmente:
Isto de se ser humano
istodeseserhumano.blogspot.com

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Martes, Abril 10, 2012 - 16:52

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José Sousa

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