Antes de tud’o mais ...
Antes de tud’o mais …
Antes que tudo, desfaço a minha barba com a Gillette, a mais perfeita e bem-feita do mundo e depois de levantar de manhã-cedo, o leito ainda aquecido e marcado pela fixa posição corporal; como uma praxe, faço a cama quando sou o último a levantar, ponho as “orelhas dos lençóis num ápice por cima das almofadas” , a chávena de leite amornado no micro-ondas com a substancial aveia e antes de qualquer outra coisa do dia e no princípio de tudo, de todos os acontecimentos que não serão cerimoniais tanto quanto os da manhã e do café, além de trabalhar das oito e pouco- às sete e tal, olhar na rua o escasso movimento habitual, a apatia dos transeuntes e a simpatia do vizinho da frente que comparece na loja a horas e minutos fixos e certeiros para dizer bom dia, comentar o jornal da véspera e os acontecimentos da periferia, além disso traz por vezes ameixas ou damascos para o lanche ou melancia da quinta que cultiva nem sei onde.
A meio da manhã com a vinda do carteiro, as facturas da luz e da água forçando-nos a pensar que só pode ser assim, a realidade a deixar-se fazer sentir.
Música por “background”, “Dark Blues” ou “Motown Jazz” sempre igual a sempre, assim também a falta de respeito habitual quando pedalo pra cá e pra lá de bicicleta, pela berma da estrada como manda a segurança; faço todos os dias uma silenciosa digressão para a urbe com os carros colando em mim como um estranho “chiclete” de banana com maracujá, uns pegando a outros, como peste; a minha indignação sempre presente, a título de “karma” ocidental e pungente, quase como uma bofetada a frio de “dia-a-dia” é o que acontece quando dou por mim na cidade das más vontades quotidianas, do massacre e da ignomínia, dos cidadãos sem honra nem tino apesar da pressa de alguns; parecendo ser abastados a julgar pelas máscaras fechadas e imponentes e no que diz respeito a carros e a cigarrilhas de saquetas douradas dobradas amarrotadas, atirados com desleixo e ainda com morrão aceso, com ou sem intento, (suponho que não), para a berma mesmo que esta esteja seca, restolho de pirotecnia, incêndio; ruidosas procissões de gentes escravas de uma missão que não entendem e as transcende deixando elas próprias de fazer sentido …
Antes de tudo, Sou um ser indignado por defeito embora o meu feitio seja feito de boas vontades saudáveis e intrínsecas como o salmão e o seu óleo qua tanta falta faz a uma boa, equilibrada dieta, excepto o óleo da batata frita embrulhada, que na ausência me não faz pesaroso ou triste, excepto a um “Mc Donalds” rico, untuoso, obeso e prejudicial, meu rival de peso no que diz respeito ao colesterol que não controlo nem consigo controlar apesar do esforço e da intenção.
Ainda assim e antes de tudo respeito o “laissez-faire” dos outros, além as parcas boas vontades de um sistema global e globalizante, castrador da firmeza individual, legível até na escolha gastronómica das filas diárias e intermináveis de consumidores, nem firmes nem filiformes, em veículos perfilados, cada um com o som do rádio mais irritante que do outro da frente ou no detrás, do sofisticado look de marca nos óculos, da arrogância egocêntrica e automobilística de enfileirado de um e de outro lado nos “drive-ins”, como se fosse aquele o melhor petisco e manjar da Terra e do céu juntos na mesma receita, lado a lado, pão com pão, carne com carne, ambos de duvidosa origem, mercado pra’ apáticas bocas, fácil digestão, chiclete-gástrica.
Antes de tud’o mais, cometo a ignomínia de me regalar com as palavras-minhas desde que chego ao trabalho até que me escapo e quando posso, por vezes parece uma manta de retalhos o que s’crevo ou um labirinto sem saída, sei isso e sinto mas o fio quando se parte da meada numa mais é fio contínuo e os nós se enredam dando uma sensação de trama mal acabada, mal alinhavada, como se fosse um pintor chinês pintando paisagens da Holanda de Gogh em aguarela.
Compõe-se a linha da beleza artística de uma fina camada de sensações das mais longínquas proveniências e até no fazer da barba se define o que será o dia e a semana e a emulsão analgésica do creme de barbear prepara-me a face e o espirito, absorve-me e observo no espelho a consciência separando-se como uma espécie de publica instituição física e intuição profética e poética profunda, criadora.
A missão é não desejar, não triunfar, embora o quisera eu interiormente; em privado ainda assim triunfo, liberto-me de ser escravo embora na realidade não deixe de o ser, natural é o que sempre fui e sou desde que faço a barba de manhã cedo, arrasto os lençóis da cama sobre as almofadas e persuado-me de que tudo é uma narrativa que estico sem o menor esforço. A calçar e descalçar é que experimento o melhor sapato, o que faz menor peso ou melhor passo.
Antes de tud’o mais seduz-me o que é reduzível ao absurdo, a interpretação dos sonhos, a apreciação das acções dos outros e o modo de exprimir que se desenrola do meu polegar erecto à expressividade côncava do que tenho pra dizer na palma da outra mão, astucia ou dom de camada fina.
Antes que tudo, desfaço a minha barba com a Gillette, depois vem tudo o que consegui ser, a repetição dos movimentos da mão destra, nem estrelas mestras nem cometas, o universo inteiro para mim é uma brecha sem conteúdo flui pela minha vontade sem que agarre senão a sensação inútil de repetir os mesmos gestos na orla onde as estrelas começam, a floresta escura.
A missão não é desejar puro, sublime e sem corpo, nem a imaginação se mede na pele dos outros, aos palmos,nos pulsos ou com um termómetro, a única maneira é reconstruir tudo, algo novo, um mundo, pra admitirem que temos isótopos do dom que é sonhar como uma medida real, escudo pra tudo e até contra o tempo, a fluência é um mito urbano, o desapego um medicamento contra nós mesmos, acção pode ser desencanto como a emoção é analgésico, a emulsão do creme de barbear prepara-me a face e o espirito como substancia especial que reage ao exterior e ao submundo, o oculto.
Profetas são os que observam na sonolência dos outros o mistério do sono absoluto, supremo e simbólico, deles próprios assim como a emulsão dum creme de barbear, na pele do rosto…
Joel matos 07/2018
http://joel-matos.blogspot.com
Submited by
Ministério da Poesia :
- Login to post comments
- 4423 reads
Add comment
other contents of Joel
Topic | Title | Replies | Views | Last Post | Language | |
---|---|---|---|---|---|---|
Poesia/General | Pra lá do crepúsculo | 30 | 3.000 | 03/06/2024 - 11:12 | Portuguese | |
Poesia/General | Por onde passo não há s’trada. | 30 | 3.676 | 02/18/2024 - 20:21 | Portuguese | |
Poesia/General | Sonhei-me sonhando, | 17 | 3.755 | 02/12/2024 - 16:06 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | A alegria que eu tinha | 23 | 3.934 | 12/11/2023 - 20:29 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Notas de um velho nojento | 7 | 2.743 | 12/06/2023 - 21:30 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | (Creio apenas no que sinto) | 17 | 2.079 | 12/02/2023 - 10:12 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Vamos falar de mapas | 15 | 6.952 | 11/30/2023 - 11:20 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | São como nossas as lágrimas | 9 | 808 | 11/28/2023 - 11:11 | Portuguese | |
Poesia/General | Entrego-me a quem eu era, | 28 | 3.225 | 11/28/2023 - 10:47 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | O Homem é um animal “púbico” | 11 | 3.751 | 11/26/2023 - 18:59 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | A essência do uso é o abuso, | 1 | 3.554 | 11/25/2023 - 11:02 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Insha’Allah | 2 | 2.409 | 11/24/2023 - 12:43 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | No meu espírito chove sempre, | 12 | 2.146 | 11/24/2023 - 12:42 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Os destinos mil de mim mesmo. | 21 | 5.984 | 11/24/2023 - 12:42 | Portuguese | |
Poesia/General | “Daqui-a-nada” | 20 | 4.273 | 11/24/2023 - 11:17 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Cada passo que dou | 0 | 1.720 | 11/24/2023 - 09:27 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Quem sou … | 0 | 2.382 | 11/24/2023 - 09:26 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Ricardo Reis | 0 | 684 | 11/24/2023 - 09:24 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | A dança continua | 0 | 2.626 | 11/24/2023 - 09:23 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | A importância de estar … | 0 | 2.261 | 11/24/2023 - 09:17 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Se eu fosse eu | 0 | 1.314 | 11/24/2023 - 09:15 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Má Casta | 0 | 2.343 | 11/24/2023 - 09:14 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Neruda Passáro | 0 | 2.949 | 11/24/2023 - 09:12 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Pouco sei, pouco faço | 0 | 1.680 | 11/24/2023 - 09:11 | Portuguese | |
Ministério da Poesia/General | Do que tenho dito … | 0 | 1.807 | 11/24/2023 - 09:09 | Portuguese |
Comments
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.