Último dia Último

Sempre fugi para o meu esconderijo de letras truculentas...

E é justamente com elas que anuncio o meu último dia,
A minha última poesia,
A minha última dose desta droga que me alucinou há tanto.

Não sei se estou velho o suficiente para tal,
Mas me sinto livre para ir a qualquer hora,
Seja numa manhã triste,
Seja numa noite de luar cromado,
Seja em plena consciência de meus atos.

Neste momento me surpreendo com o que penso:
Gostaria ao menos de beijar uma virgem
Para desabrochar nela o desejo mais louco do verbo amar,
Uma virgem até de pensamento...
Gostaria de abraçar pelo menos uma vez o meu pai
E me despedir para sempre.
Gostaria de chorar e sentir o meu coração secar
Num gesto delicado daqueles que se vão sem explicação
Ou daqueles que amam e não são amados
Daqueles que sempre se isolam do mundo
Por não serem compreendidos
Daqueles que cortam os pulsos
Para verem suas vidas se definhando
Até a última gota de sangue
Daqueles que tentam fazer de tudo
Que desistem no final
Que lamentam pela fraqueza
Que lamentam de si
Que lamentam pela falta de coragem
Que lamentam pela vida
E se acham excluídos da vida
Largados...
Sem mãe
Sem pai

Quero que meu último dia seja assim:

Sem lágrimas ou presenças
Sem discursos de saudades
Sem família ou amigos
Sem caixões ou lápides
Sem pena ou dó

Com muita chuva e tristeza
Com solidão o bastante para eu ver que meu fim é maior que meu começo.

Quero ver apenas o meu aceno de adeus no espelho de meu quarto
Quero olhar pela última vez meus olhos refletidos na poça d’água...
Não quero me esquecer,
Não quero.

Queria ter tido coragem de ter sido um poeta
Porque fui um,
Mas com medo de sê-lo.

--------------------

(Não leve flores para ossos e para carnes podres devoradas por vermes
Leve flores para sua amada, aquela que sempre esteve a te esperar
Ou para sua mãe que te olhou de longe)

Último dia
Último olhar pela janela pictórica
Último dia
Último sorriso meio cínico e meio inocente
Último dia
Última manhã de passos lentos
Último dia
Último suspiro de alfazema
Último aperto de mãos
Último abraço forte
Última conversa
Último dia
Último sentimento das coisas em movimento
Como a água, o ar, o fogo, a terra
A Terra, as nuvens
O mundo
As pessoas
As crianças que brincam na varanda
Os velhos que jogam dama na praça
As moças que passam pela minha janela
Para comprar pão na padaria,
Os “olás”, os “bons dias”
Último dia
Último sonho tranqüilo
Último dia
Último olhar secreto para além daquilo que imaginei ser
Último arrependimento por ter em minhas mãos as chances que desperdicei
Ou por querer escolher o contrário daquilo que escolhi.

Deveria ter caminhado nas ruas opacas de meus anos
Deveria ter olhado mais cedo para o meu verdadeiro eu
Deveria ter acariciado mais aquela que sempre esteve ao meu lado.

--------------------
Enraizando meus pés na lama do mundo imundo dos anos esgotados
Atolo-me até o pescoço neste lodo criado pela maldade humana.
Rompendo ares e afunilando rios
Rosno para a maldade dos que invejam este meu estranho desejo escarnecido
De aprontar minhas lágrimas com antecedência,
De mergulhar fundo e sonolento para a música mais doce e lastimosa.

Foi-se os dias em que os céus eram arenas em minhas batalhas de pipas
Minhas linhas não mais rabiscarão tal tinta macia azul de atmosferas
Não mais
Nunca mais olharei outra vez dentro destes teus olhos, minha vida!
Não mais beijarei seus lábios, minha vida!
Não mais me emocionarei pelas novidades dos seus dias
Não mais
Não mais gritarei seu nome e cantarei sua música
Não mais serei iludido por suas lindas mentiras e verdades
Não mais me deixarei apanhar pelos cruzeiros de suas manhãs,
Pelos verdes de tua roupa de mundo
Pelos rubros lábios sedentos de tua boca de existência
Não mais
Não mais exigirei de tuas possibilidades
Não mais exigirei de teus mares de esperança primaveral
Não mais me congelarei em seus metais invernais
Não mais sentirei depressão pela beleza de tuas curvas intocáveis.

E minha morte nasce prematura pelo útero da vida
E desliza pela fonte do desconhecido até atrair minha atenção.
Quão lasciva e penetrante ela aparece,
Como serpente no verde campo
Dos outros modos que meus olhos enxergarão
Dos outros sons que meus ouvidos ouvirão
Das outras palavras que minha voz falará.
Não sei o que serei, mas não tenho medo de sentir isto.
E assim me vou
Sem despedidas
Derradeiro.

Submited by

Sunday, April 25, 2010 - 16:20

Poesia :

No votes yet

Alcantra

Alcantra's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 10 years 6 weeks ago
Joined: 04/14/2009
Posts:
Points: 1563

Comments

SuzeteBrainer's picture

Re: Último dia Último

Alcantra,
Poema primoroso!
Gigante em beleza,contéudo textual e pura poesia...
Suzete Brainer.

Conchinha's picture

Re: Último dia Último

Adorei cada letra truculenta deste poema verdadeiramente belo.
Escreveste como se fosse o último. Sente-se.
Abraço

Favorito

anadeornelas's picture

Re: Último dia Último

Alcantara,

Absolutamente sublime!!!!!!!!

Me inclino perante tal talento...e me remeto ao silêncio!!!

Um beijo poeta!!!

ÔNIX's picture

Re: Último dia Último

(Não leve flores para ossos e para carnes podres devoradas por vermes
Leve flores para sua amada, aquela que sempre esteve a te esperar
Ou para sua mãe que te olhou de longe)

Custa-me ver morrer uma flor.
Custa-me ver morrer um amor
Custa-me tanto, mas tanto ver tanta coisa em meu redor, que me refugio na morte lenta em meu corpo a amolecer, a adoecer, a amolgar as penas que carrego.

Custa-me tudo em todos os lugares
Custa-me tanto ter que pensar, que me orientar, que me hipnotizar, que me incendiar...e por fim me calar de vez em, quando

Custa-me saber que vou morrer, mas o que me custa ainda mais, é saber que a morte é lenta e leva tempo a se eternizar.
Custa-me não saber que cor ele assume quando me levar
Deixa-me sempre nesta indefinição entre o ir e o ficar
É bom saber-me aqui, mas também noutro lugar
Que me leve então
Também eu estou pronta...

Custa-me não poder tocar-te
Não poder ouvir-te
Não poder sequer saber como brilham os teus olhos quando as nossas palavras se tocam sem se tocarem.

Gostava tanto de poder saber como reajes ao mundo por detrás deste pequeno mundo

Pro favor fica comigo, até uma última vez

Enfim gosto-te muito

Comecei a escrever e as palavras foram saindo. Vou postar isto mais tarde no blogue e aqui. Pode ser?

Beijos

Matilde D'Ônix

Henrique's picture

Re: Último dia Último

Sem comentários, um desejo derradeiro!!!

:-)

Outro's picture

Re: Último dia Último

Boas Alacantara!! Antes de mais, gostei muito do que escreveste.
Não acredito que seja o teu ultimo poema.
A poesia é de uma "portabilidade" que cabe no bolso pequeno das moedas de algumas calças.
É "aspirina cronica". Recorrer-lhe-ás as vezes que forem necessarias até ao final da tua vida biologica.

Quanto ao teres sido poeta, foste muitas vezes aqui.
Foste Poeta, estiveste Poeta e etc...
Não são os leitores,as páginas imprimidas, os livros editados, alguns deles esgotados, as livrarias que os vendem e etc, que fazem os poetas.
O poeta faz-se a si proprio. Nem que nunca tenha mostrado um unico poema que escreveu a uma unica pessoa para o ler. Aqui no waf já estiveste poeta mais que uma vez. Só consegue estar poeta quem o é.

Vai daqui um abraço e um pedido, que quando te apetecer novamente estar poeta,logo, ser poeta, não sejas egoista e volta a repartir essa tua arte connosco.

analyra's picture

Re: Último dia Último

Nem pensar! Volta para escrever textos divinos como estes.
Te proíbo de partires
pelos direitos a mim conferido
por todos os versos lidos
de boa poesia
por ter-te visto declamar um dia
inflamado em emoção
por ver em ti um poético coração
Portanto, não podes partir
tua a pena é dividir
tua poesia e inspiração.

Grande abraço!

Poema Favorito!!!!

Add comment

Login to post comments

other contents of Alcantra

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Love Soma de poemas 5 2.715 02/27/2018 - 11:09 Portuguese
Poesia/General Abismo em seu libré 0 3.110 12/03/2012 - 23:35 Portuguese
Poesia/General Condado vermelho 0 3.581 11/30/2012 - 21:57 Portuguese
Poesia/General Ois nos beijos 1 2.599 11/23/2012 - 10:08 Portuguese
Poesia/General Dores ao relento 0 2.865 11/13/2012 - 20:05 Portuguese
Poesia/General Memórias do norte 1 2.045 11/10/2012 - 18:03 Portuguese
Poesia/General De vez tez cromo que espeta 0 3.198 11/05/2012 - 14:01 Portuguese
Poesia/General Cacos de teus átomos 0 2.461 10/29/2012 - 09:47 Portuguese
Poesia/General Corcovas nas ruas 0 2.970 10/22/2012 - 10:58 Portuguese
Poesia/General Mademouselle 0 2.355 10/08/2012 - 14:56 Portuguese
Poesia/General Semblantes do ontem 0 2.197 10/04/2012 - 01:29 Portuguese
Poesia/General Extravio de si 0 2.920 09/25/2012 - 15:10 Portuguese
Poesia/General Soprosos Mitos 0 3.467 09/17/2012 - 21:54 Portuguese
Poesia/General La boheme 0 3.204 09/10/2012 - 14:51 Portuguese
Poesia/General Mar da virgindade 2 2.332 08/27/2012 - 15:26 Portuguese
Poesia/General Gatos-de-algália 0 3.212 07/30/2012 - 15:16 Portuguese
Poesia/General Vidas de vidro num sutil beijo sem lábios 2 2.459 07/23/2012 - 00:48 Portuguese
Poesia/General Vales do céu 0 2.365 07/10/2012 - 10:48 Portuguese
Poesia/General Ana acorda 1 2.759 06/28/2012 - 16:05 Portuguese
Poesia/General Prato das tardes de Bordô 0 2.507 06/19/2012 - 16:00 Portuguese
Poesia/General Um sonho que se despe pela noite 0 2.789 06/11/2012 - 13:11 Portuguese
Poesia/General Ave César! 0 3.085 05/29/2012 - 17:54 Portuguese
Poesia/General Rodapés de Basiléia 1 2.527 05/24/2012 - 02:29 Portuguese
Poesia/General As luzes falsas da noite 0 2.974 05/14/2012 - 01:08 Portuguese
Poesia/General Noites com Caína 0 2.441 04/24/2012 - 15:19 Portuguese