Margem Sul

Suponho que se chamam Libânio e Maria…
Maria não…não.
Lurdes, assim será.
Não sei sequer o que me levou a supor tais graças;
Mas assentam-lhes.
Vejo-os sair todas as manhãs de um palacete nas avenidas novas.
Estão apaixonados.
Libânio, que podia ser Romeu, ama Lurdes, uma Julieta de Lisboa...de Lisboa toda e de todos os cantos onde serenata o desamparo.
Suspeito, sem ter de suspeitar que trabalham no metro a dar vista aos cegos.
São exuberantes!
Caminham a representar Shakespeare, como se fossem reis, da Avenida da República.
Têm uma teatralidade venérea, com cheiro…
Todas a manhãs.
Trajam farpelas de época, ao que lhes assumo algumas posses.
Pela avenida fora, adornam os transeuntes de uma indiferença parva.
Só eles existem…todas as manhãs nos palácios da avenida.
Libânio é uma camurça amargurada pela coça dos tempos, é um pente e dois sapatos com a custódia de uma carteira com papiros envelhecidos, sem bilhete de identidade.
Lurdes, ostenta pinturas de guerra, com batons vermelho vivo a lembrar charcos de sangue nos palacetes da cidade.
Suponho que é assim.
Lurdes, faz pairar o ar, faz parar o trânsito, faz pairar Libânio que se encontra encantado numa côdea parada no vermelho dos semáforos…
A Lurdes sinaleira, com duas laranjas loucas a desfilar em contra-mão e a estampar risos nos carros.
Ninguém pára, todos olham…cegos, com Lurdes a dar-lhes vista.
No milésimo de uma buzina, a rua agora também paira…
Universitárias decentes, bibelôs púberes, agentes de seguros e um quiosque admirado!
Não pára o 28, á pinha de apressados, direitos a Cabo-Ruivo.
Via desatravancada e continua uma valsa a dois.
Este mês que passou surpreendeu em afectos no banco do jardim…
Sentados a merendar, a jogar pão velho aos pombos, na divisão de uma garrafa.
Os pombos também são seus…de Lurdes e de Libânio.
Sentei-me no banco em frente a cegar um meio sobrolho.
Libânio é poeta ou louco, ou as duas coisas…
De uma catacumba de silêncio, onde as cataratas choram as quedas do mundo, levanta-se num repente lúcido e grita…grita alto, grita aos pombos, grita aos cegos…sussurra a Lurdes um grito que gravou há muito tempo, antes do grito, antes do pairar…
-“Porque o amor é uma coisa que me dá nos teus olhos suspiros infindáveis…
Os pombos ficam cegos…Libânio insiste…
-“Subo ao teu peito enquanto um ar de arrepio me inspira os pulmões…”
Lurdes esticou um lenço porque o pobre do Libânio se engasgou com um cancro…tossia muito!
Tossia tanto, que Lurdes e uma carcaça mais um pombo aflito pairaram no meio da estrada.
Fui…cego, nunca mais os vi…
Porém, hoje ao fim da tarde vi a Lurdes das avenidas sentada a olhar o rio…
A Lurdes sem pairar… quieta
Todas as manhãs…
A Lurdes de Lisboa, que é de Lisboa toda onde serenata o desamparo.
A Lurdes triste, sem pão, sem palácio, sem pombos sem transito…
Sem Libânio…
Que se fartou de Shakespeare, das avenidas, de côdeas, de tossir…que atravessou o rio... e foi morar para a outra margem.

Submited by

Sunday, January 31, 2010 - 21:56

Poesia :

No votes yet

Lapis-Lazuli

Lapis-Lazuli's picture
Offline
Title: Membro
Last seen: 9 years 47 weeks ago
Joined: 01/12/2010
Posts:
Points: 1178

Comments

Aless's picture

Re: Margem Sul

Uma visão do amor dilacerantemente humana.
Apetece-me aplaudi-lo de pé, uma vez, e outra e mais outra!
Uma visão quase cinematográfica dos nossos inadaptados.
Uma poesia carregada de emoção e saudade.
Tenho saudades de Libânio, porque me dói o olhar de Lurdes.

Add comment

Login to post comments

other contents of Lapis-Lazuli

Topic Title Replies Views Last Postsort icon Language
Poesia/Thoughts Os nossos olhos combinam 1 572 07/11/2010 - 02:20 Portuguese
Poesia/Aphorism Cheiro um adeus cobarde 2 535 07/03/2010 - 23:04 Portuguese
Poesia/Aphorism Queira deus palmeiras verdes 2 516 07/01/2010 - 15:23 Portuguese
Poesia/Thoughts Duo das almas em fuga 3 442 06/26/2010 - 16:41 Portuguese
Poesia/Thoughts Quando morreres o amar 2 507 06/26/2010 - 15:35 Portuguese
Poesia/Love Só em muito silencio... 9 435 06/24/2010 - 10:09 Portuguese
Poesia/Passion Ouve-me 4 796 06/16/2010 - 23:21 Portuguese
Poesia/Intervention O punho dos inválidos 1 512 06/15/2010 - 22:15 Portuguese
Poesia/Love Condão 3 509 06/10/2010 - 10:37 Portuguese
Poesia/Love Partilha-te 3 468 06/09/2010 - 13:16 Portuguese
Poesia/Intervention Greve Geral 2 443 05/31/2010 - 01:05 Portuguese
Poesia/Dedicated Poetas Imorais (dedicadinho) 6 819 05/25/2010 - 01:02 Portuguese
Poesia/Aphorism Quanto mais conheço os homens... 1 2.140 05/19/2010 - 02:29 Portuguese
Poesia/Dedicated Morre Marta... 1 954 05/19/2010 - 01:33 Portuguese
Poesia/Aphorism Sem penas para voar 4 623 05/17/2010 - 15:46 Portuguese
Poesia/Love My lady blues 1 596 05/17/2010 - 01:54 Portuguese
Poesia/Aphorism Maio 1 929 05/15/2010 - 03:55 Portuguese
Poesia/Love Acho que a paixão foi dormir 4 671 05/13/2010 - 20:47 Portuguese
Poesia/Aphorism Assimétricos 1 593 05/12/2010 - 20:51 Portuguese
Poesia/Dedicated Ao Ary...Camarada e Poeta 1 529 05/10/2010 - 08:53 Portuguese
Poesia/Aphorism A cara dos outros 2 447 05/09/2010 - 22:35 Portuguese
Poesia/Thoughts Alegoria dos ausentes 1 583 05/09/2010 - 19:02 Portuguese
Poesia/Thoughts Reminiscências pontos e reticências 7 810 05/08/2010 - 14:14 Portuguese
Poesia/Aphorism Eu sei voar 5 660 05/08/2010 - 04:22 Portuguese
Poesia/Meditation Letra infinita 1 607 05/06/2010 - 21:33 Portuguese